Tortura institucionalizada no Ceará

Adolescente em centro socioeducativo

Brasil é notificado pela OEA por violação de direitos humanos de adolescentes

Por Liana Melo | ODS 1 • Publicada em 29 de janeiro de 2016 - 08:12 • Atualizada em 29 de janeiro de 2016 - 13:55

Adolescente em centro socioeducativo

Marcas de tortura e sinais evidentes de tratamento degradante acompanhados de prática de isolamento prolongado e até supostos abusos sexuais. As vítimas são jovens e rapazes, de 13 a 18 anos. Todos privados de liberdade e vivendo em condições degradantes em instituições socioeducativas da capital cearense. As denúncias de maus tratos e violação aos direitos dos adolescentes chegaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em março de 2015. Há uma semana o governo brasileiro foi notificado e tem 15 dias para esclarecer as denúncias. O prazo está correndo.

Um dos autores da denúncia à CIDH – órgão vinculado a Organização dos Estados Americanos (OEA) –, é o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). A entidade desconfia que a resposta do governo brasileiro será burocrática e evasiva, especialmente porque a notificação não tem força de lei. Ainda que exponha publicamente o país e, em âmbito internacional, o Brasil terá que se defender contra as denúncias de práticas violadoras de direitos humanos, seja por ação ou omissão do Estado.

As duas outras instituições signatárias do documento foram o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca) e a Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced).

A notificação chegou ao governo via Itamaraty. Em nota, a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos confirmou que, após o recebimento, “solicitou informações ao governo local, responsável pela gestão do Sistema Socioeducativo no âmbito estadual, sobre as ações implementadas para solucionar os problemas apontados, que serão sistematizadas em um relatório a ser entregue à Comissão”.

Explicou ainda, na mesma nota, que, em novembro de 2015, foi criado um Grupo de Trabalho com a participação de representantes dos governos Federal e estadual, e entidades ligadas as questões de juventude e direitos humanos. Na ocasião, o governo do Ceará assinou um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com o Ministério Público Estadual para institucionalizar os compromissos firmados: 1. Investigar e afastar  funcionários envolvidos com tortura e maus-tratos; 2. Adiantar o cronograma de execução das obras das novas unidades socioeducativas; e 3. Criar ações de longo prazo a serem realizadas este ano.

Pelo teor da notificação, o TAC não saiu do papel.

CEARÁ 1

As denúncias envolveram maus tratos praticados em três instituições do estado: os centros educacionais São Miguel, Dom Bosco e Patativa do Assaré. Todos na região Metropolitana de Fortaleza. Os três centros foram alvo de rebeliões em 2015 e, em todas as ocasiões, a Polícia Militar foi acionada. Para “conter” os adolescentes rebelados, que, segundo relatos de Djalma Costa, conselheiro do Conanda, batiam e balançavam as grades dos dormitórios, a polícia atirou à queima roupa balas de borracha em direção aos dormitórios e lançou gás de pimenta no interior destes.

Um dos adolescentes, ouvidos pela comissão do Fórum Permanente das ONGs de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes – que monitora o sistema socioeducativo do Ceará desde 2008 – relatou que chegou a desmaiar por causa do gás. Ainda segundo os relatos feitos à entidade, “os adolescentes foram retirados dos dormitórios e submetidos a um ritual de tortura. Dispostos em filas, um a um eram golpeados na cabeça com os cassetetes da polícia e ordenados a correr pelo piso molhado e ensaboado. Atordoados pela pancada inicial na cabeça, quem caísse seria pisoteado pelos policiais.”

No período de 2014 a 2015 foram contabilizadas mais de 40 rebeliões e motins, além da fuga de, aproximadamente, 150 adolescentes.

O Ceará, que já chegou a liderar o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, devido a altas taxas de homicídios, perdeu o posto em 2015 para Alagoas. Mas é o estado, segundo o conselheiro do Conanda, onde ocorrem as maiores violações no sistema socioeducativo.

Os jovens vivem confinados e amontoados. Onde cabem apenas 50 adolescentes, encontramos instituições superlotadas com até 100 internos. Fizemos algumas fiscalizações nestes três instituições e chegamos a ouvir relatos de meninos que chegaram a ficar 40 dias sem sair das celas, sem ver a luz do sol

O Ceará é reincidente em violações de direitos humanos e não apenas contra adolescentes. Esta é a terceira vez que a CIDH notifica o estado. Nas duas primeiras vezes as denúncias tiveram um final feliz. Em uma delas desencadeou a aprovação de uma legislação específica para mulheres em situação de violência doméstica; na outra, gerou a reformulação de políticas de saúde mental no estado.

Não é de hoje que o Fórum Permanente das ONGs de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes negocia com o governo do Ceará para resolver o problema. Todas as tentativas, segundo Costa, foram em vão: “Esgotamos todos os canais de negociação. É triste ter que apelar a um órgão internacional”.

Levantamento feito pelo advogado Rafael Barreto a pedido das entidades do terceiro setor contabilizou 65 denúncias de tortura desde agosto de 2014. Em audiência pública realizada na Assembleia Legislativa do Ceará, em março último, Barreto relatou que, além das formas de tortura física, os internos eram privados de colchões, lençóis, água potável e material de higiene. “O estado vive um ciclo de violência e tortura que se retroalimenta dentro dos centros socioeducativos”, conclui Costa.

Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *