Quanto vale manter o emprego?

O clássico Tempos Modernos, de Charlie Chaplin, é de 1936, mas os dramas no ambiente de trabalho continuam e se agravaram ao longo do tempo. Foto DPA

O preço é cada vez mais alto e inclui submissão, estresse e cansaço

Por Marlene Oliveira | ODS 1 • Publicada em 31 de agosto de 2016 - 08:00 • Atualizada em 2 de setembro de 2016 - 12:46

O clássico Tempos Modernos, de Charlie Chaplin, é de 1936, mas os dramas no ambiente de trabalho continuam e se agravaram ao longo do tempo. Foto DPA
O clássico Tempos Modernos, de Charlie Chaplin, é de 1936, mas os dramas no ambiente de trabalho continuam e se agravaram ao longo do tempo. Foto DPA
O clássico Tempos Modernos, de Charlie Chaplin, é de 1936, mas os dramas no ambiente de trabalho continuam e se agravaram ao longo do tempo. Foto DPA

Quando vi que era meu filho ao telefone, tratei de sair logo de uma reunião para atendê-lo. Imaginei que era uma dessas urgências que as mães sempre imaginam. Não estava errada completamente. Ele me contou que uma amiga, da escola, tinha se suicidado na noite anterior, em casa, depois de deixar tudo organizado para o próximo dia na escola. Com planos para o dia seguinte, 16 anos, bonita, inteligente, simpática, com amigos e familia… ele pergunta: “Por quê? Como não notamos nada? Ela não dava nenhum sinal de sofrimento ou de angústia…”. Eu não soube nem o que dizer. Se aconteceu com ela, que tinha o que a gente considera “tudo”, isso pode acontecer com qualquer pessoa? Essa era a pergunta que todos os colegas, incrédulos, faziam a si mesmos. Imediatamente a escola colocou em prática o plano de crise: professores, psicólogos e educadores se revezaram para atenuar a dor, trazer amparo e tentar explicar o inexplicável: o que faz disparar num ser humano a decisão de acabar com a própria vida. Será que ela considerava sua vida imprópria?

Entre 2006 e 2009, 60 funcionários da France Télécom, que hoje se chama Orange, se suicidaram. Somente no período entre 2008 e 2009, foram 35. Ou seja, mais de um funcionário se suicidando por mês. Dá para imaginar isso sem sentir um embrulho no estômago?

Comentei com colegas de trabalho. Um deles tentou me consolar dizendo que isso seria um mal que assola os países ricos, os países que têm “tudo”. Será?

Nessa mesma época, começam a pipocar as notícias associando a onda de suicídios de empregados da France Télécom, empresa de telefonia francesa que hoje se chama Orange, às condições de trabalho vigentes na empresa. Entre 2006 e 2009, 60 funcionários se suicidaram. Somente no período entre 2008 e 2009, foram 35. Ou seja, mais de um funcionário se suicidando por mês. Dá para imaginar isso sem sentir um embrulho no estômago? Mesmo na França, onde eu pensava que os trabalhadores tinham “tudo”: jornadas menores, férias maiores, benefícios sociais…Que condições foram essas que fizeram 35 pessoas romper uma barreira e dar cabo à vida, na grande maioria das vezes, dentro do local de trabalho?

O preço para manter a sua cadeira

Maurice Halbwachs, sociólogo francês, foi um dos primeiros a associar os aspectos sociais às causas dos suicídios. Segundo ele, as razões não seriam apenas o desemprego e as falências de empresas, mas, sobretudo, o sentimento de opressão que recaía sobre os trabalhadores.

Vivemos numa sociedade onde o trabalho é fundamental. Através dele, garantimos nossa sobrevivência, mas não só isso. Para a maioria das pessoas, o trabalho significa muito mais do que uma simples atividade remunerada. Ele possui um papel social na medida em que nos coloca no centro do palco, como atores importantes. Ele pode dar visibilidade às nossas criações, pode permitir o desenvolvimento de nossos talentos.  Pela convivência com os outros, podemos desenvolver sentimentos de solidariedade, de cooperação. Ele nos faz sentir parte de um grupo.

Mas afinal, o que está acontecendo com o trabalho que está levando as pessoas a sofrerem tanto, ao ponto de se suicidarem?

O mundo contemporâneo tem passado por profundas mudanças econômicas, sociais e políticas. As empresas se sentem pressionadas a reagir rapidamente e a redução de custos passou a ser o objetivo fim de todo o patronato. Profissões e carreiras passaram a ter importância secundária, o sentimento do dever cumprido e da qualidade passou a ser expresso através de números e metas a serem atingidas à custa de qualquer sacrifício. Passamos a ser meros cumpridores de metas.

Sacrifício parece ser a palavra que melhor representa o ambiente de trabalho hoje e pode ser a tradução do “ no pain, no gain” – sem dor não tem ganho

Considerado como transtorno mental e com status de patologia, o suicídio aparentemente é a ponta de um iceberg, o ápice de uma sequência de episódios degradantes a que os trabalhadores são cada vez mais submetidos ante à ameaça constante do desemprego. Esse medo faz com que nos submetamos a condições de trabalho que não nos fazem bem: horas extras sem pagamento, trabalho nos finais de semana, que nos roubam o convívio social e familiar. Uma pressão permanente que nos deixa exaustos e fragilizados. Aceitamos, por vezes, até mesmo humilhações, agressões e, não raro, nos sentimos obrigados a esquecer valores morais e éticos.

Mesmo na França, um dos países onde os assalariados estão entre os mais protegidos pela lei e pelos sindicatos, são cada vez mais frequentes as longas baixas por doença, por esgotamento profissional, o chamado “burn out“, sobretudo nas grandes empresas.

A divulgação da onda de suicídios, expôs uma faceta nefasta dos métodos de gestão adotados em algumas empresas e gerou reações imediatas da imprensa e da população, pedindo investigação por parte do poder público e medidas preventivas por parte das empresas.

No Brasil, infelizmente, o quadro não é melhor e é agravado pelo silêncio e falta de dados que exponham o problema. Em tempos de instabilidade econômica e crise em alguns setores, a insegurança e temor de ficar sem trabalho é constante. Quem tem emprego, trabalha sob a angústia de perdê-lo a qualquer momento. Quem não tem emprego tem ainda mais medo: de não conseguir nada antes do fim das economias. A capacidade de submissão aumenta.

Mudanças profundas no conteúdo e no ambiente de trabalho podem causar impactos psicossociais arriscados, que merecem cuidados

Em julho de 2012, Didier Lombard, presidente da France Telecom entre 2005 e 2010, foi acusado de assédio moral, algo inédito até então na França. Antes, a responsabilidade recaía sobre os chefes diretos das vítimas e nunca subia na hierarquia. Recentemente, a justiça estendeu a responsabilidade a outros ocupantes do alto escalão da France Telecom na época, entre eles o Diretor de Recursos Humanos. De acordo com o código penal francês, os responsáveis por danos morais podem ser condenados a até 1 ano de prisão e €15 mil de multa.

Ante o temor de que essa crise vivida pela France Telecom possa também atingi-las, e pressionados pela opinião pública, as empresas têm tomado diversas providências para atenuar os danos, mesmo sem recuar antes às metas de redução de custo. Um extenso cardápio de benefícios tenta acalmar os ânimos e manter a moral em alta.

O Brasil encontra-se em desvantagem no tocante ao debate e à prevenção. A constituição de 1988 inclui dispositivos sobre direitos individuais e tutelares do trabalho; relações sindicais; direitos de greve; regularização de trabalhadores em colegiados e a determinação da eleição de um empregado, em empresas com mais de 200, para facilitar os entendimentos com o empregador. O artigo 186 do Código Civil de 2002 dispôs sobre o dano exclusivamente moral, quando há ação ou omissão voluntária, negligência, imprudência que viola um direito. Nesse caso, o empregador responde no âmbito trabalhista e penal.

Todos esses pontos estão sob questionamento tanto na França quanto no Brasil. A flexibilização das leis trabalhistas pode trazer um impacto direto no ambiente de trabalho e na saúde dos trabalhadores. Empresas, sindicatos e imprensa estão entre os agentes que têm um papel crucial para valorizar o trabalhador, tornando novamente saudável este ambiente.

Marlene Oliveira

Jornalista e profissional de comunicação, vive em Paris e conhece bem a ebulição do ambiente corporativo. Acredita que a queda do império romano "é pouco" perto das transformações que a sociedade está vivendo mas, otimista até a raiz dos cabelos, acredita que dias melhores virão. Inxalá!

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *