O hip hop da integração multicultural

A camaronense Helen, de vermelho, comandando uma das badaladas aulas de dance hall reggae. Foto Janaína Cesar

No subterrâneo da estação central de Roma, jovens de várias partes do mundo têm aulas de tolerância através da dança

Por Janaína Cesar | ODS 1 • Publicada em 4 de maio de 2017 - 17:57 • Atualizada em 6 de maio de 2017 - 16:05

A camaronense Helen, de vermelho, comandando uma das badaladas aulas de dance hall reggae. Foto Janaína Cesar
A camaronense Helen, de vermelho, comandando uma das badaladas aulas de dance hall reggae. Foto Janaína Cesar
A camaronense Helen, de vermelho, comanda uma das badaladas aulas de dance hall reggae. Foto: Janaína Cesar

Enquanto os trens deslizam pelos trilhos da Estação Central de Roma, em uma sala de chão xadrez vermelho e branco, com um pequeno palco ao fundo e um grande espelho frontal, escondida no subterrâneo do binário 24,  jovens italianos e imigrantes promovem uma revolução intercultural através do hip hop.

Eles fazem parte do projeto Termine Underground, criado em 2007 pela coreógrafa italiana Angela Cocozza.  Nesta sala, que era usada pelos ferroviários após o horário de trabalho, russos, sudaneses, indianos, albaneses e italianos deixam de lado as diferenças culturais e se entregam à dança, paixão comum que os agrega e os ajuda a enfrentar o, muitas vezes difícil, caminho da integração.

Termine Underground é um projeto focado na prevenção. Fui sincera, me aproximei respeitando o grupo, as diferenças e as dificuldades de cada um deles. Muitos cresceram nas ruas, tinham problemas com drogas e álcool e estavam em situação de risco

“Termine Underground é um projeto focado na prevenção”, explica Angela que, após ter trabalhado em um projeto social europeu que levava o teatro para as prisões, decidiu fazer algo para evitar que adolescentes acabassem atrás das grades. A ideia partiu da simples observação da moçada, que já se reunia todos os dias, na calçada ao lado da estação Termine, para dançar hip hop e break.  “Vi que existia potencialidade naquele grupo e me joguei literalmente de cabeça no projeto”, conta a coreógrafa que, mesmo não conhecendo nada sobre o hip hop, foi bem aceita pelo grupo. Segundo Angela, rolou uma empatia imediata. “Fui sincera, me aproximei respeitando o grupo, as diferenças e as dificuldades de cada um deles. Muitos cresceram nas ruas, tinham problemas com drogas e álcool e estavam em situação de risco”.

Se no início o projeto era algo experimental, com o tempo, Termine Underground se transformou em um espaço que vai além de uma escola onde é possível aprender a dançar gratuitamente. Hoje, representa um lugar de encontro, uma espécie de segunda casa meio anárquica, onde a única regra existente é o respeito. E mesmo vindo de mundos difíceis, a regra ali, onde as diferenças são apreciadas e não menosprezadas, sempre foi respeitada.  E pensar que nesses dez anos de atividade passaram por lá cerca de 500 jovens e nunca tiveram um problema.

Jovens como as italianas Chiara, 28, e Picca, 32, que frequentam o projeto há 2 e 3 anos, respectivamente. Não são imigrantes, mas migrantes, visto que nenhuma delas nasceu em Roma. Talvez isso as ajude a entender a vida de quem imigra, de quem deixa sua casa para fugir de uma guerra insana ou de uma crise econômica. E foi justamente através das italianas que a indiana Padmini, 23, descobriu o projeto.  A jovem que chegou ao país no final do ano passado para trabalhar, frequenta a escola de dança há dois meses. Apesar de não falar italiano, Padmini não encontrou dificuldade em se comunicar visto que no mundo do hip hop quase todos falam inglês.

As três frequentam as badaladas aulas de dance hall reggae que são ministradas pela espetacular camaronense  Helen, ou melhor Wood Helen, 28, como é conhecida no cenário artístico. Com sorriso estampado no rosto, Helen é a representação do projeto que deu certo. Ela fez parte do primeiro grupo de dançarinos que integraram o projeto. De menina rebelde passou a ser referência da dança afro na Itália e no exterior. Tanto é que, no início de abril, quando a reportagem esteve no local, Helen estava de malas prontas para Moscou. Iria participar como jurada de um concurso de dança.

Angela Cocozza., criadora do projeto Termine Underground. Foto Janaína Cesar
Angela Cocozza, criadora do projeto Termine Underground, com aulas de hip hop. Foto: Janaína Cesar

“Esse lugar é mágico. Muitos adolescentes após terem passado por aqui seguiram seus caminhos, foram para outras escolas para se profissionalizarem, mas uma coisa os une até hoje: o fato de terem vivido essa experiência. O meu coração está aqui e aquilo que sou também”, diz Helen.  “Sou filha de imigrantes, vivo na Itália há anos e não tenho cidadania.  A dança para mim é uma questão de sobrevivência”.

A lenda do break em Roma

Com os anos, outros talentos surgiram e começaram a brilhar, como Sinan, 39 anos. Ele é considerado uma lenda da break dance em Roma.  Conhecido como B-Boy Angelo, nasceu no Kosovo e foi vendido pelo pai para uma família de ciganos que morava na Sicília. Obrigado a roubar para pagar a “dívida”, acabou fugindo. Chegou em Roma na adolescência e logo descobriu o projeto de dança. De aluno passou a mestre e hoje ensina break para crianças.  Já Angela, a criadora do projeto, que tinha ficado nos bastidores cuidando da parte burocrática, este ano resolveu voltar a dançar, mas como aluna. “Frequento todos os cursos que posso, essa inversão de papéis é maravilhosa ”, diz.

A história de Termine Underground foi tema de uma websérie gravada pela Termine TV, um projeto de comunicação que também nasceu nas entranhas da estação central romana.  Os bailarinos do projeto se apresentaram em diversos teatros e, ano passado, Angela levou ao palco um espetáculo que contou com a participação de 50 deles. “Foi uma loucura, mas valeu a pena”, conta sorrindo. Dance For Your Life é o nome do último espetáculo, apresentado no dia 23  de abril, em Roma.

Esse lugar é mágico, muitos adolescentes após terem passado por aqui seguiram seus caminhos, foram para outras escolas para se profissionalizarem, mas uma coisa os une até hoje: o fato de terem vivido essa experiência. O meu coração está aqui e aquilo que sou também

É claro que nem tudo são flores. As pedras no meio do caminho apareceram. Em 2010, a sala foi fechada e a turma colocada para fora. O grupo tentou encontrar outro local, mas desistiu, até porque, segundo Angela, já existia uma identificação com o lugar. “Não queríamos sair da Estação”, diz. A coreógrafa, que tinha ficado com uma cópia da chave da sala, decidiu voltar. “A coisa foi tão maluca que demorou uns dois meses para nos descobrirem”, conta. A “clandestinidade” terminou quando baixaram seguranças no local. Após longa conversa, finalmente, ficou decidido que a sala poderia ser ocupada pelo projeto. Em 2011, Termine Underground receberia um financiamento do governo e poderia arcar com os custos de um aluguel. Tudo parecia andar nos trilhos, mas, no mesmo ano, o governo de Silvio Berlusconi cai, Mario Monte assume como primeiro-ministro e investimentos ou gastos do governo são sistematicamente bloqueados. Conclusão: o projeto ficou sem o apoio governamental.

Angela conta que, nos últimos anos, a trupe recebeu alguns mandados de expulsão, mas as ameaças não se concretizaram. “Chamamos a imprensa, fazemos barulho e temos amigos que nos querem realmente muito bem”, diz. “O último mandado foi de 19 de janeiro, mas ainda estamos aqui”.   O grupo criou uma forma de autofinanciamento, cobrando por alguns cursos mais específicos, por exemplo. Mas o hip hop, carro-chefe do projeto, é sempre gratuito, e as aulas acontecem todas as terças e quintas-feiras.

A coreógrafa, apaixonada pelo que faz, vive no Termine Underground,  24 horas por dia, mas deixa claro: “Não sou o messias, não salvarei ninguém. Apenas dou um incentivo e espero que eles (bailarinos) se criem sozinhos”.  Para ela, aquela sala é um bunker onde fazem experimentos humanos, testam conceitos e tentam criar um mundo novo.

Janaína Cesar

Formada pela Universidade São Judas Tadeu (SP), trabalha há 17 anos como jornalista e vive há 15 na Itália, onde fez mestrado em imigração, na Universidade de Veneza. Escreve para Estadão, Opera Mundi, IstoÉ e alguns veículos italianos como GQ, Linkiesta e Il Giornale di Vicenza. Foi gerente de projetos da associação Il Quarto Ponte, uma ONG que trabalha com imigração.

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *