Humanitário, ma non tropo

Entidades pouco fazem para melhorar a situação dos trabalhadores

Por Janaína Cesar | Sem categoria • Publicada em 11 de outubro de 2016 - 08:00 • Atualizada em 31 de março de 2020 - 15:52

Nos guetos, o lixo é recolhido uma vez a cada dez dias e nesse meio tempo se acumula na estrada. Foto de Riccardo De Luca

Nos guetos, o lixo é recolhido uma vez a cada dez dias e nesse meio tempo se acumula na estrada. Foto de Riccardo De Luca

Entidades pouco fazem para melhorar a situação dos trabalhadores

Por Janaína Cesar | Sem categoria • Publicada em 11 de outubro de 2016 - 08:00 • Atualizada em 31 de março de 2020 - 15:52

Nos guetos, o lixo é recolhido uma vez a cada dez dias e nesse meio tempo se acumula na estrada. Foto de Riccardo De Luca
Nos guetos, o lixo é recolhido uma vez a cada dez dias e nesse meio tempo se acumula na estrada (Foto de Riccardo De Luca)

(Puglia, Itália) – Dentro dos guetos puglieses, onde os imigrantes vivem em condições análogas à escravidão, explorados por capatazes ligados ao crime organizado, entidades humanitárias cumprem a difícil tarefa de enxugar gelo. Somente em Rignano Garganico, o mais antigo da região, dezenas de Organizações Não Governamentais (ONGs) estiveram presentes nos últimos anos. No entanto, em vez de a situação ser atenuada, o que aconteceu foi justamente o contrário: o gueto cresceu.

Nem mesmo o incêndio registrado em fevereiro deste ano, que destruiu quase completamente o campo, foi suficiente para dar um fim a esta triste realidade. Ninguém até hoje conseguiu explicar como, poucos dias após o acidente, o gueto praticamente ressuscitou com a aparição quase milagrosa de algumas barracas. “Aí teve a mão da máfia”, disseram alguns habitantes do lugar.  Quando aconteceu o incêndio, cerca de 200 pessoas moravam lá. A falta de controle e fiscalização favoreceu a expansão das barracas, e a situação se agravou com o tempo. No fim de agosto, quando a reportagem do #Colabora esteve no local, o número de imigrantes chegava quase a três mil.

Leia mais: “Italianos também são escravizados“, “Cenas da escravidão do novo milênio” e “Os escravos do tomate

Concetta Notarangelo, da Caritas, explica que a entidade trabalha com orientações legais sobre direitos trabalhistas. Ela também faz parte do projeto Io Ci Sto, formado por várias ONGs a fim de promover a integração cultural por meio do ensino da língua italiana, além de uma oficina de bicicletaria e animação para as crianças.  Hoje, a Caritas é a única associação que ainda trabalha no gueto, mas segundo Stefano Fumarulo, diretor da Sessão de Política para Imigração e Antimáfia Social da região da Puglia, não recebe mais financiamento público.

A Caritas, mesmo depois de meses de negociação, só consegue permanecer alguns minutos com os filhos dos imigrantes. Foto de Riccardo De Luca
A Caritas, mesmo depois de meses de negociação, só consegue permanecer alguns minutos com os filhos dos imigrantes. Foto de Riccardo De Luca

No passado, a associação humanitária Emergency era a responsável pelo serviço de assistência sanitária aos imigrantes que vivem ali. Este ano o contrato não foi renovado e, quando é necessário, o serviço de saúde pública é ativado.  “Desde fevereiro, quando chegamos à região, não demos mais dinheiro a nenhuma associação que trabalha nos guetos, as respeitamos, mas achamos que o trabalho feito em lugares onde pessoas vivem em condições de escravidão, não é um trabalho. Quer ajudar de verdade quem está lá dentro? Ofereça uma alternativa, tire-os de lá”, afirma Fumarulo.

Para ele, “os serviços fornecidos pelo governo em colaboração com as ONGs, acabaram criando uma infraestrutura social no local que no final não tutelava o imigrante, mas sim, quem organizava de maneira criminal o gueto, isto é, os capatazes e a rede mafiosa”.  Ele conta que falou com muitas pessoas que viveram em Rignano e todas elas têm a mesma opinião: as atividades feitas lá dentro não têm quase nenhuma utilidade. “Nosso objetivo é acabar com o gueto oferecendo alternativas de inclusão e trabalho”.

Tráfico de mulheres

O gueto de Rignano não é um lugar para os fracos. O tráfico caminha livremente, e a prostituição está presente de julho a setembro, meses em que o lugar recebe mais gente. As garotas, quase todas nigerianas, são vítimas do tráfico internacional de seres humanos. Elas vêm de Nápoles e, assim como qualquer mercadoria, são encomendadas e devem chegar ali pontualmente no período indicado. Depois são devolvidas a seus cafetões. Rostos tristes, sofridos, com olhares apagados, quase sem vida. Se viver ali já é um pesadelo para os homens, é impensável o que significa para essas mulheres.

Para Alex, um pesquisador que estuda a exploração nos campos de tomate, mas que pediu para não ser identificado, os imigrantes vivem em condições de marginalidade. “O nível de exploração em que se encontram, aliado ao racismo institucionalizado, faz com que o direito ao trabalho lhes seja negado”, diz. Segundo Alex, o gueto é um lugar terrível, e existe porque é mantido por um sistema que precisa de trabalhadores que se coloquem em condição de escravidão. “Estamos falando de escravidão moderna, atual, que na verdade se diferencia em pouco da escravidão de séculos passados. Essas pessoas realmente são livres? Realmente escolheram viver deste modo? Nem os países de onde eles vêm são tão miseráveis quanto o gueto”.

Há dois anos acompanhando a realidade dos campos puglieses, Alex também critica as supostas melhorias realizadas pelo governo. “Todos os anos o Estado gasta milhões de euros no gueto de Rignano. Disponibilizaram banheiros químicos, a coleta de lixo e levaram água potável. Mas termina tudo ali”, diz ele. E basta andar pelos becos para ver que o pesquisador tem razão ao reclamar. Os banheiros químicos são tão fétidos que ninguém mais tem coragem de entrar (o cheiro é nauseante), o lixo é recolhido uma vez a cada dez dias e nesse meio tempo se acumula na entrada do gueto, e a água “potável” sai de uma torneira que fica ao lado de um esgoto a céu aberto. A água jorra da torneira e enche galões de plástico branco e transparente, é com ela que se cozinha e se mata a sede.

O Burgo do regime fascista

 A poucos quilômetros de Rignano surge o gueto dos Búlgaros. Se o primeiro já era o inferno na terra, o segundo, que fica em Borgo Mezzanone, não dá para definir. Nesse lixão a céu aberto vivem muitas crianças, em situação ainda mais degradante. Não têm acesso a água, banheiro e eletricidade. Aqui não existe nada além de barracas e carros velhos. As crianças são abandonadas à própria sorte, confinadas a uma vida de exclusão, às margens da sociedade.

A água “potável” do lugar sai de uma única torneira que fica ao lado de um esgoto a céu aberto. Foto de Riccardo De Luca
A água “potável” do lugar sai de uma única torneira que fica ao lado de um esgoto a céu aberto (Foto de Riccardo De Luca)

É difícil entrar ali, a própria Caritas, após meses de negociação, só consegue permanecer alguns minutos com a criançada, o tempo de cantar umas musiquinhas, bater palminhas e se mandar. Nada mais do que isso. Os voluntários explicaram que existe a barreira da língua e que, por enquanto, é só o que conseguem fazer.

“Já não tem trabalho, e por causa dos negros ficou ainda mais difícil”, diz Lanirira, de 53 anos de idade, referindo-se ao número de pessoas dispostas a trabalhar no campo em relação à pouca quantidade de trabalho. Ele vive com a família no gueto há dois anos e não vai embora quando a colheita termina. “Para onde vou? Ficamos por aqui mesmo”. Já sua esposa sonha em um dia voltar a sua terra. “Lá tem água, os rios são limpos, você não imagina a falta que faz ter água em casa. Hoje, dependemos de galões de água que vamos buscar na cidade, mas não é fácil”, diz.

Todos os dias, pela manhã, furgões dirigidos por capatazes chegam ao gueto e carregam umas 30 pessoas para os campos. A paga é a mesma de Rignano. Laniria, porém, não estava entre os “sortudos” que tinham conseguido trabalho. Aquela seria mais uma jornada sem nenhuma receita. Borgo Mezzanone foi criado na periferia de Foggia para abrigar pessoas removidas de suas casas durante o período de bonificação do regime fascista. Não é à toa que um pôster do Dulce paira numa parede do bar central da região. Hoje vivem ali 800 italianos e cerca de 3 mil imigrantes. “É uma zona de fronteira”, diz Dina Diurno, operadora da Caritas, uma das responsáveis pelo projeto Io ci sto.

Janaína Cesar

Formada pela Universidade São Judas Tadeu (SP), trabalha há 17 anos como jornalista e vive há 15 na Itália, onde fez mestrado em imigração, na Universidade de Veneza. Escreve para Estadão, Opera Mundi, IstoÉ e alguns veículos italianos como GQ, Linkiesta e Il Giornale di Vicenza. Foi gerente de projetos da associação Il Quarto Ponte, uma ONG que trabalha com imigração.

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