Fome na era da comida-espetáculo

Criança desnutrida no Sudão do Sul: 2.5 a 4,6 milhões de pessoas sofrem de desnutrição no país

Em livro premiado, escritor argentino Martín Caparrós denuncia desperdício e desigualdade

Por Luciana Cabral-Doneda | ODS 1 • Publicada em 20 de maio de 2016 - 08:00 • Atualizada em 8 de outubro de 2017 - 22:23

Criança desnutrida no Sudão do Sul: 2.5 a 4,6 milhões de pessoas sofrem de desnutrição no país
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Criança desnutrida no Sudão do Sul: 2,5 a 4,6 milhões de pessoas sofrem de desnutrição no país

É hora do almoço na Itália. Na televisão, surge um menino africano desnutrido aos prantos em campanhas de organizações como Médicos sem Fronteiras e Save the Children, que revelam o difícil trabalho de cuidar de crianças famintas espalhadas pelo mundo. Como comer diante da fome? É a pergunta do vencedor do prêmio literário italiano Tiziano Terzani 2016, o argentino Martín Caparrós, autor de La fame (A fome),  que denuncia o flagelo desnecessário da nossa época em que, segundo a ONU, a cada 5 segundos morre uma criança por desnutrição em meio aos 800 milhões que passam fome.

Comer, a coisa mais material, mais íntima, entrou na lógica do espetáculo ou da masturbação

“Vivemos na era da comida. A alimentação nunca ocupou um lugar tão  importante na nossa vida; o business da comida nunca produziu tanto dinheiro; nunca houve tanta comida. Nunca houve tanto alimento não comido. Não digo somente pelo desperdício – enorme – das nossas sociedades, em que mais de um terço dos alimentos acaba no lixo; o digo sobretudo por essa nova característica da comida, transformada em espetáculo”, afirma Caparrós, explicando que atualmente, além de comer, lemos, vemos, escutamos, imaginamos, fazemos programas de televisão e publicamos livros sobre comida. “Comer, a coisa mais material, mais íntima, entrou na lógica do espetáculo ou da masturbação.” Comer virou uma arte, enquanto para muitos ainda é uma necessidade. Ele critica até mesmo a moda dos orgânicos. “É só mais um privilégio para fugir da avalanche industrial que produz comida barata”, conclui.

Caparrós, um dos fundadores do jornal argentino Pagina 12, revela em mais de 700 páginas o contexto histórico que faz com que atualmente nós sejamos capazes de co-habitar o planeta Terra com crianças como Amin, 7 anos, mas com o peso de um menino de 4, olhos esbugalhados e movimentos lentos, a letargia comum nos casos graves de desnutrição. “Esse menino vai morrer se não comer”, diz, no livro, a médica nigeriana que o atende em uma tenda montada em um vilarejo. E a cada capítulo Caparrós nos faz a mesma pergunta: “Como podemos conviver com isso?” 

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O escritor argentino Martín Caparrós, premiado por livro sobre a fome

O livro é permeado por histórias reais, de personagens famintos que ele encontrou durante a sua pesquisa de campo. Na Nigéria, taxa de natalidade de 7 filhos por mulher, o sonho de uma mãe é ter uma vaca. Ele lembra da solidariedade na divisão de pão e sopa nos guetos judeus europeus durante a guerra. Dos latino-americanos que procuram o que comer no lixo. Foram cinco anos de viagens, entrevistas, pesquisas desse escritor nascido em 1957 em Buenos Aires e exilado na França durante a ditadura no seu país. O autor traça uma geografia da fome e os mecanismos que fazem com que ela continue existindo através de narrativas de indivíduos que vão além de cifras e dados. Estão na Índia, na China, na Nigéria, na sua Argentina, milhões de pessoas sem trabalho ou sendo explorados com salários miseráveis que não garantem um prato de comida.

O problema não é a pobreza desses milhões de indivíduos, revela Caparrós, mas a excessiva e onipotente riqueza de todo resto do mundo com “o velho truque da caridade”. Os Estados Unidos incentivaram a obesidade dos seus pobres enquanto do outro lado do mundo a desnutrição irrompe. Os chineses alimentam os porcos, cuja demanda de carne cresce a cada dia, enquanto desempregados fuçam nos lixões. Caparrós questiona e critica  lugares comuns e personagens públicos como o famoso economista Amartya Sen, madre Teresa de Calcutá, “que nunca abriu um hospital com o dinheiro que arrecadava”, atores e cantores que se vestem de “embaixadores da fome” e até mesmo o seu conterrâneo, Mario Bergoglio, o Papa Francisco, não escapa das suas críticas.

Foi em 1980, revela Caparrós, que o FMI e o Banco Mundial, com o Washington Consensus (dez regras para o ajustamento macroeconômico dos países em desenvolvimento que passavam por dificuldades), convenceram os governos africanos, por meio de ameaças com a dívida externa, de reduzir a ingerência estatal em vários setores, partindo da agricultura. Colheitas reduzidas? Carestia? Nada de subvenção. Foi a condenação à morte por fome de milhares de africanos, explica o escritor. Enquanto isso, nos Estados Unidos e na Europa os governos subvencionavam os seus agricultores em cerca de 300 bilhões de dólares ao ano. A carne e o leite das vacas na Europa são de alta qualidade, a manutenção de cada uma custa cerca de 2,70 dólares ao dia. No livro de Caparrós, um camponês de Vidarbha revela que o sonho do agricultor indiano é reencarnar em uma vaca europeia. São esses subsídios que permitem baixar o preço dos grandes produtores e levar à falência os pequenos.

Todo ano 220 milhões de toneladas de alimentos vão para o lixo. Só o desperdício da Itália daria para alimentar 44 milhões de pessoas. Lixo, na opinião de Caparrós, é uma metáfora da nossa época em que alguns jogam fora aquilo que outros têm tanta necessidade. A era da comida é também a era da tecnologia, os avanços na produção, na manipulação, na transformação e no armazenamento aumentaram a oferta, a especulação das grandes empresas. Mas quem está fora do sistema não tem como pagar pelo pão ou pelo arroz.  “A pobreza é só a moldura, a causa principal da fome é a riqueza – de poucos, a nossa”, afirma.

 

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