A guerra contra a mulher sul-africana

Menina seguro o cartaz durante uma manifestação em Durban, na África do Sul, contra a violência doméstica

A cada oito horas, uma é morta pelo parceiro e 50% já foram vítimas de violência doméstica

Por Trajano de Moraes | ODS 1 • Publicada em 31 de janeiro de 2016 - 08:47 • Atualizada em 31 de janeiro de 2016 - 11:26

Menina seguro o cartaz durante uma manifestação em Durban, na África do Sul, contra a violência doméstica
Menina seguro o cartaz durante uma manifestação em Durban, na África do Sul, contra a violência doméstica
Menina seguro o cartaz durante uma manifestação em Durban, na África do Sul, contra a violência doméstica

Os assassinatos e a violência contra a mulher na África do Sul são um desafio para o mundo. Dentre as nações que não estão em guerra, o país tem o maior número de mulheres mortas por arma de fogo. A cada oito horas uma é assassinada pelo parceiro e entre 40% e 50% sofrem algum tipo de violência doméstica. Em artigo para o jornal inglês “The Guardian”, Bethan Cansfield, da Womankind Worlwide, sustenta que uma série de fatores permitem o florescer de uma cultura de impunidade, criando “um círculo vicioso de silêncio”. A imensa maioria das atingidas é negra e pobre.

A profunda humilhação é parte do DNA sul-africano e é historicamente alimentada pelas ideologias simbióticas do apartheid (racismo) e do patriarcado (sexismo).

Depois de uma visita de oito dias em dezembro, a relatora especial da ONU para casos de violência contra a mulher, a croata Dubravka Simonovic, considerou o fenômeno algo “quase aceito como normal” e recomendou ao governo sul-africano o estabelecimento de uma agência de combate ao feminicídio, que deverá divulgar um relatório sobre a situação todo ano no dia 25 de novembro. Um estudo mais amplo sobre o resultado de sua visita será conhecido em junho.

Apesar do bem-intencionado trabalho da ONU, estudos e relatórios estão muito longe de obter a redução dos números escabrosos. As estatísticas mais recentes indicam que apenas um em cada nove estupros é denunciado à polícia. Em artigo para o site “The Conversation”, a professora Lyn Snodgrass, da Universidade Metropolitana Nelson Mandela, de Port Elizabeth, afirmou que, no papel, as mulheres sul-africanas deveriam gozar do mais alto status mundial. Há todo um arcabouço legal que as favorece. Mas a realidade é totalmente diferente.

A maioria da população que vive abaixo da linha de pobreza é negra e mulher. Sondgrass listou uma série de fatores que contribuem para a situação: pobreza, patriarcado, desigualdade, estagnação econômica, desemprego elevado e baixo nível educacional. Mas ela mesmo concluiu que esses fatores não explicam, em toda a sua extensão, a “extraordinária selvageria” de estupros e mortes de mulheres na África do Sul. “Quando o estupro se torna um ato de selvageria sexual, torna-se uma arma de guerra – no caso uma guerra contra a mulher sul-africana”, escreveu.

No “New York Times”, a jornalista, escritora e ativista dos direitos humanos Sisonke Msimang lembrou que nem as mulheres que ocupam cargos de destaque são poupadas. Referia-se a Thuli Madonsela, defensora pública e uma das figuras mais populares e reconhecidas do país. Ela ganhou amplo respeito por se recusar a engavetar um processo sobre o desperdício de dinheiro público na construção de um palácio para o presidente Jacob Zuma. Ainda assim é submetida a comentários sexistas, zombarias e ridicularizada por sua aparência.

Um estudo da consultoria KPMG estimou que o impacto da violência contra a mulher na economia sul-africana variou entre US$ 5,7 bilhões e US$ 8,5 bilhões em 2013 (último dado disponível), o que representa 0,9% a 1,3% do PIB. O trabalho lembrou a importância de o governo lidar mais seriamente com o problema, no momento em que implementa o Plano Nacional de Desenvolvimento, com a meta de crescer 5,5% por ano.

A brutalidade se mantém mesmo diante de instituições favoráveis às mulheres, com sólida representação e liderança em estruturas estatais de tomada de decisões; mecanismos legais e constitucionais de proteção de seus direitos; leis pioneiras que salvaguardam seus interesses e numerosos grupos de lobby da sociedade civil.

Desde 1998 vigoram na África do Sul os chamados os 16 Dias de Ativismo para a não violência contra Mulheres e Crianças, uma campanha de conscientização que começa no dia 25 de novembro (Dia Internacional para Eliminação da Violência contra a Mulher) e vai até 10 de dezembro (Dia Internacional dos Direitos Humanos), período que inclui ainda o Dia Internacional da Criança e o Dia Mundial contra a Aids.

Mas Lyn Snodgrass, em seu artigo “África do Sul: um lugar perigoso para ser pobre, negro e mulher”, identificou uma profunda desconexão entre as elites políticas, mulheres que alcançaram o poder no governo, e a mulher comum. Ela cita uma pesquisa que aponta para uma “reação neopatriarcal” na medida em que progressos no caminho da igualdade entre os gêneros provocam resistências.

Segundo Snodgrass, “a profunda humilhação é parte do DNA sul-africano e é historicamente alimentada pelas ideologias simbióticas do apartheid (racismo) e do patriarcado (sexismo). (…) Homens negros, emasculados e humilhados durante o apartheid, resistiram à opressão racista que também envolvia defender sua masculinidade. Violência e masculinidade se tornaram, assim, ligadas. Na África do Sul, a maior parte da violência é perpetrada por homens negros”.

Trajano de Moraes

Jornalista com longas passagens por Jornal do Brasil, na década de 1970, e O Globo (1987 a 2014), sempre tratando de temas de Política Internacional e/ou Economia. Estava posto em sossego quando foi irresistivelmente atraído pelos encantos do #Colabora. E resolveu sair da toca.

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