Sobrevivente é nota mil no Enem

Berbardo e a mãe, Carmen Terezinha: protagonistas de uma incrível história de superação

Desenganado pelos médicos na maternidade, deficiente auditivo e com limitações psicomotoras, ele tirou nota máxima na redação do Enem

Por Lauro Neto | ODS 4 • Publicada em 6 de fevereiro de 2017 - 11:00 • Atualizada em 6 de fevereiro de 2017 - 14:25

Berbardo e a mãe, Carmen Terezinha: protagonistas de uma incrível história de superação
Berbardo e a mãe, Carmen Terezinha: protagonistas de uma incrível história de superação

Bernardo Lucas Piñon de Manfredi não foi apenas mais um dos 77 estudantes a tirar nota 1000 na redação do Enem 2016, num universo de mais de 5,8 milhões de candidatos. O jovem de 19 anos estudou o ensino fundamental na rede pública e passou em Filosofia para a UFRJ e para a PUC, em 2º e 4º lugares, respectivamente. Mas não é isso que o faz especial. Nem o fato de ele ser deficiente auditivo. Bernardo é um sobrevivente. Sem exageros. Nascido em Cabo Frio, na Região dos Lagos do Rio de Janeiro, ele sobreviveu a uma bactéria hospitalar que matou 82 bebês numa maternidade local entre junho de 1996 e março de 1997. Não sem sequelas.

Aos três meses, ele ainda não expressava nenhuma reação. Era um vegetal. Parei a minha vida para me dedicar a ele. Hoje, fala, anda e faz tudo. Ele é um milagre e um exemplo enorme para o mundo.

Além da surdez neuro-sensorial bilateral, diagnosticada apenas quando tinha quatro anos, o garoto teve dificuldades para começar a andar e outras limitações psicomotoras. No Enem, ele fez as provas com o auxílio de um transcritor, devido à sua disgrafia severa profunda (distúrbio na coordenação dos músculos das mãos e dos braços que impede uma escrita legível e ágil). O estudante demorou duas horas e meia para escrever o rascunho da redação com o tema “Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil”. O edital do exame garantia uma hora a mais de prova para ele. O texto foi transcrito com a grafia original das palavras e eventuais erros. Para chegar à nota máxima, ele teve que superar uma série de outros tipos de preconceito ao longo da vida.

Sua mãe, a artista plástica Carmen Terezinha, conta que os médicos diziam que Bernardo não sobreviveria:

– Quando ele foi infectado pela bactéria, um médico mandou encomendar o caixão. Ele já estava completando 1 mês na UTI em Cabo Frio até que consegui transferi-lo para um hospital no Rio. Vim com ele de ambulância.  Outro médico disse que ele ficaria surdo, cego, paralítico e dependeria de mim para o resto da vida. Aos três meses, ele ainda não expressava nenhuma reação. Era um vegetal. Parei a minha vida para me dedicar a ele. Hoje, ele fala, anda e faz tudo.  Ele é um milagre e um exemplo enorme para o mundo.

As crianças me batiam, me chutavam e me humilhavam. Tudo isso porque eu tinha este problema da surdez. Era tratado como “retardado”. Para piorar, adoravam puxar meu cabelo. Lembro que eu chorava, falava que não queria ir mais para escola

Mas o mundo nem sempre o viu assim. Bernardo foi recusado por escolas e apontado com autismo, entre outros diagnósticos sem exames comprobatórios.  O primeiro colégio público que o aceitou em Niterói, ainda no maternal, só o fez com a condição de que Carmen permanecesse em sala de aula. Na alfabetização, ganhou bolsa integral numa instituição de ensino em São Gonçalo. Inicialmente, ele foi acolhido bem, mas não tardou até que suas diferenças começassem a incomodar.

– Quando me alfabetizei, me senti uma outra pessoa, mas ainda tinha muito a evoluir. As dificuldades físicas eram principalmente na escrita, pois doíam minhas mãos – recorda Bernardo. – Mas minha mãe, sempre na persistência, me colocava para treinar caligrafia. Eu odiava, obviamente. No primeiro ano, ainda tive uma ajuda da professora, mas sempre era minha mãe, em casa, que fazia todo o trabalho psicopedagógico comigo. Quando comecei o segundo ano, fui expulso. O colégio não tinha condições de continuar me educando. Não estavam preparados para atender alunos “deficientes”.

Depois de muito procurar, no meio do ano letivo Carmen conseguiu transferi-lo para a Escola Municipal Almirante Barroso, na Tijuca. Em meio a tratamentos com fisioterapeutas, fonoaudiólogos e otorrinos, Bernardo continuava a caminhar, tentando superar os obstáculos. Começou a fazer aulas de teatro e informática, mas a solidão era um efeito colateral que o incomodava. Adorava jogar futebol, mas seus colegas debochavam de sua forma diferente de correr devido a suas limitações locomotoras. O bullying não se restringia a piadinhas com seus longos cabelos e tomou proporções agressivas.

– As crianças me batiam, me chutavam e me humilhavam. Tudo isso porque eu tinha este problema da surdez. Era tratado como “retardado”. Para piorar, adoravam puxar meu cabelo. Lembro que eu chorava, falava que não queria ir mais para escola. Fiquei muito afetado com o bullying que sofri. Tanto que, no ano seguinte, fiquei mais agressivo, mas não por isso fazer parte da minha natureza.  Tinha medo e muita insegurança. Os alunos tentavam se aproximar de mim e fazer amizades, mas eu é que os repelia. Além disso, me sentia inferior aos outros, e isso me desanimava de estudar.

A transformação começou quando ele mudou novamente de escola, desta vez para a também municipal Affonso Penna, no mesmo bairro. No 8º ano, começou a gostar de ler e se encantou pela disciplina História da Arte, que foi o primeiro passo para seu despertar filosófico. As visitas a museus, galerias de arte e teatros, além de um passeio a Petrópolis, fizeram com que ele amadurecesse. As aulas de Geografia e Francês, matéria em que só tirava nota 10, o estimularam a estudar mais.

Porém, uma greve de três meses na rede municipal de ensino em 2013 deixou Bernardo extremamente preocupado com seu futuro. Era a hora de migrar de escola novamente. Ele chegou a fazer prova para uma ONG que oferece bolsas de estudos em colégios particulares para os melhores alunos da educação pública, mas diz que não foi aceito devido a seus problemas de saúde.

Foi então que passou em sexto lugar e com bolsa de 100% para cursar o ensino médio no tradicional Colégio Palas, na Tijuca. Bernardo conta que o diretor disse que garantiria a parte pedagógica, mas não a simpatia dos alunos. Curiosamente, os dois vieram juntos. Àquela altura, o dedicado aluno já tinha a fama de escrever bem, não só textos em prosa, como em poesia. A ponto de um poema seu sobre filosofia ser publicado por um professor num blog e ir parar na prova de uma outra escola. Ao mesmo tempo, fez amizades que considera essenciais. Para coroar, foi eleito orador na formatura por seus colegas.

– Foi no Colégio Palas que vivi os melhores momentos da minha vida escolar. Lá que pude realmente tomar conhecimento de mundo e da minha própria personalidade. É difícil falar dos professores. Realmente todos eles são maravilhosos – elogia Bernardo, citando um a um. – O Jefferson foi o meu Mestre. Ele que me preparou verdadeiramente para este mil.  Ao longo do 3º ano, fiz mais de 130 redações.  Mas foram principalmente os professores de História, Geografia, Sociologia e, obviamente, Filosofia, que me deram conhecimentos e aumentaram a minha capacidade de argumentar. Tenho minha infinita gratidão ao Palas.

Agora, Bernardo vai dar um novo passo na sua caminhada. Desta vez, rumo à PUC, universidade onde escolheu estudar, não apenas pelo destaque na área de Filosofia. Assim como no Enem, o estudante terá direito a um transcritor e uma hora mais nas provas. Ele aprendeu na prática a fazer leitura labial, mas precisa que os professores falem de frente para ele.  Apesar de usar um aparelho auditivo, que lhe dá um ganho de 10% na audição, o jovem não gosta muito do recurso.

Ainda ecoam na sua memória os gritos de dor que ouvia nos hospitais durante as diversas internações ao longo de sua infância. A dificuldade de lidar com o sofrimento dos outros foi um dos motivos que o fez desistir do sonho de ser neurologista. Como Biologia e Química não eram seu forte, ele enveredou para as Ciências Humanas. E ainda sofreu questionamentos dentro da própria família por ter escolhido Filosofia. Com sua fé em Deus, mesclada pelo catolicismo e espiritismo, ele está disposto a encarar o próximo desafio:

– Tomava muitas injeções e vacinas, pois tive hepatite e outras doenças. Sentia a energia daquele lugar (hospital) e não suportava o seu odor. Não é qualquer um que sobreviveria o que sobrevivi. As pessoas não acreditam em Deus, pois muitas não têm a chance de experimentar um milagre como o meu, que sobrevivi num hospital onde morreram todas as crianças. Minha mãe dedicou sua vida por mim, e isso trouxe muitas glórias, sendo as maiores delas as recentes. Muitos me perguntam como vou sobreviver sendo filósofo. Até mesmo meus familiares ficam perplexos. Mas sempre mantenho a firmeza. Se consegui o mais difícil, chegar até aqui, por que não conseguiria sobreviver com a Filosofia? As pessoas infelizmente não entendem mais o seu valor, mas eu espero mudar esta realidade.

Lauro Neto

Carioca, mas cidadão do mundo. De carona na boleia de um caminhão ou na classe executiva de um voo rumo ao Qatar, sempre de malas prontas. Na cobertura de um tiroteio na cracolândia do Jacarezinho ou entrevistando Scarlett Johansson num hotel 5 estrelas em Los Angeles, a mesma dedicação. Curioso por natureza, sempre atrás de uma boa história para contar. Jornalista formado na UFRJ e no Colégio Santo Inácio. Em 11 anos de jornal O Globo, colaborou com quase todas as editorias. Destaque para a área de educação, em que ganhou o Prêmio Estácio em 2013 e 2015. Foi colunista do Panorama Esportivo e cobriu a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016.

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2 comentários “Sobrevivente é nota mil no Enem

  1. Diane Touriño José disse:

    Como tia do Bernardo´Piñon posso confirmar toda sua trajetória e afirmar que ele é uma pessoa maravilhosa, um verdadeiro guerreiro, daqueles que partem pra luta com dedicação integral. E está aí o resultado de tanta vontade de vencer: nota máxima na redação do ENEM 2016 !! Parabéns meu querido, lindo e afetuoso sobrinho!! bjs da Dinda Diane

  2. Smithf699 disse:

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