Escravidão à mesa

Fachada do restaurante Senzala, no Alto Pinheiros, em São Paulo. Foto Adriana Barsotti

Banalizada, senzala vira nome de restaurantes e casas de shows no Brasil e em outros países

Por Adriana Barsotti | ODS 4 • Publicada em 28 de junho de 2017 - 09:30 • Atualizada em 30 de junho de 2017 - 19:10

Fachada do restaurante Senzala, no Alto Pinheiros, em São Paulo. Foto Adriana Barsotti
Fachada do restaurante Senzala, no Alto Pinheiros, em São Paulo. Foto Adriana Barsotti
Fachada do restaurante Senzala, no Alto de Pinheiros, em São Paulo. Foto: Adriana Barsotti

(Reportagem de Adriana Barsotti e Aydano André Motta) – Que tal pedir um filé Senzala com uma caipirinha Senzala enquanto seu filho saboreia um Clubinho Senzala? O almoço custaria R$ 120, sem o serviço. O preço não chega a ser indigesto para os padrões de mercado. Já o nome que batiza os pratos  e o estabelecimento – localizado em Alto de Pinheiros, bairro de endinheirados em São Paulo – provoca incômodo em quem faz a óbvia associação com um dos episódios mais lamentáveis da história do Brasil. Rápida busca no Google mostra que existem outros seis restaurantes e casas de shows no país batizados com a palavra-símbolo dos precários e insalubres alojamentos dos escravos nas casas grandes senhoriais. Mas nomear estabelecimentos com o termo extrapola nossas fronteiras. Existem uma creperia em Londres e um restaurante  em Montreal, no Canadá, com a mesma marca.

É só um nome que as pessoas tentam ligar a pelourinho e sofrimento. Até hoje, só uma pessoa reclamou na nossa página no Facebook

No Senzala Bar e Grill paulistano (há também o Senzala Restaurante, situado na mesma praça, a Panamericana), constam do cardápio 11 pratos, petiscos e bebida batizados com o nome que invoca o local classificado pelo abolicionista Joaquim Nabuco como “o grande pombal negro”. Entre o wrap Senzalinha e o omelete Senzala, um dos autores da reportagem escolheu o último ao almoçar ali no  dia 10 de junho. O objetivo era exatamente conhecer a atmosfera do local. O omelete, recheado de queijo, presunto e alho poró,  ao preço de R$ 31, em nada lembra a escassez das senzalas: a porção é bem servida. O restaurante é bem avaliado por seus frequentadores, no Trip Advisor, onde 53% dos clientes o consideram “muito bom”.  Nos comentários negativos, não há uma queixa sequer sobre o nome do estabelecimento: eles giram em torno de serviço e preço. Mas também lá não havia negros no dia da visita da reportagem. Nem entre os clientes e nem entre os funcionários presentes.

A avaliação simpática de alguns consumidores, entretanto, não impediu que o restaurante fosse alvo de manifestações. Em 2015, atores negros espalharam-se pelas mesas, fizeram seus pedidos e foram ao banheiro. Na volta, exibiram correntes amarradas aos seus pés.  Além disso, os ativistas empunharam cartazes com os dizeres “Hiroxima Grill” e “Restaurante Auschwitz”. O segundo protesto foi recente, em abril deste ano, quando vidraças do restaurante foram quebradas num ato contra as reformas trabalhista e da Previdência. Nesse caso, o ato tinha uma motivação política mais contemporânea do que o passado de escravidão: o local fica próximo à residência do presidente Michel Temer e era por ele frequentado.

A impressão que tenho disso é que tudo se resume na busca pelo exótico, sem medir consequências. Assim, o comércio de bens culturais chegava e ainda chega a esses ‘lugares de ninguém’, mesmo ao outrora infecto e repulsivo ambiente da cozinha, antes interdito às pessoas da família patriarcal, pois era parte da senzala, embora ainda dentro da casa-grande

A caipirinha Senzala, light ou normal, servida em vários sabores. Foto Adriana Barsotti
A caipirinha Senzala, light ou normal, servida em vários sabores. Foto Adriana Barsotti

Mas o que leva o dono de um restaurante a nomear seu estabelecimento com um dos símbolos mais tristes da escravidão? Não tivemos sucesso em obter uma resposta do dono do Senzala paulistano após algumas ligações. Mas outros dois empresários aceitaram discutir o assunto. Dono do Restaurante e Pizzaria Senzala de Ubatuba, em São Paulo, Alfredo Correa Filho informa que o estabelecimento, fundado por sua família em 1971, assim foi batizado por ser localizado, à época, em um casarão que lembrava uma casa grande e, portanto, associado a senzalas. “De lá para cá, o tempo foi passando, mudamos de endereço, mas não mudamos de nome”, diz. “É só um nome que as pessoas tentam ligar a pelourinho e sofrimento”, afirma. “Até hoje, só uma pessoa reclamou na nossa página no Facebook”, conta. “Tenho funcionários trabalhando aqui há 26 anos, há 18 anos: o pagamento sai em dia e nada lembra uma senzala”, sustenta.

A empresa tem responsabilidade na escolha do nome. Ele traz uma série de signos. A escravidão é um passivo muito caro

A consultora de marketing Karine Karam, sócia da Markka Consultoria, acredita que o nome Senzala só seria adequado se os estabelecimentos tivessem a intenção de serem inclusivos. “A empresa tem responsabilidade na escolha do nome. Ele traz uma série de signos”, prossegue. “Mesmo se fosse uma proposta transgressora, teria que ser bem explicada”, diz a consultora. “Senzala não tem signos positivos, não combina com prazer e entretenimento. A escravidão é um passivo muito caro. Eu não recomendaria esse nome para cliente algum”, completa.

No restaurante Senzala de Salesópolis, a pouco mais de 100 km de São Paulo, há a intenção do resgate histórico, de acordo com uma das sócias, Silvana Camilo. Ela afirma nunca ter tido problemas com o nome do estabelecimento por “trabalhar a marca historicamente”. Embora o estabelecimento não tenha sediado uma senzala, funciona num casarão de quase dois séculos, erguido pelos escravos. Durante a semana, recebe excursões escolares e, aos domingos, funciona como restaurante. O local era originalmente um entreposto comercial, inclusive de mão de obra escrava. “Contamos essa história”, afirma Silvana, lembrando que o casarão é aberto à visitação pública em geral.

Escritor, compositor e estudioso das culturas africanas, Nei Lopes enxerga, na escolha do nome, a ancestral visão dos espaços da cultura negra como permissivos, “onde o branco rico pode entrar à vontade, sem qualquer restrição, porque teoricamente é dono, patrão”. Ele lista boates de ricos dos anos 1950-60, com nomes como Macumba, Mocambo, Casa Grande, Chicote, Bambu, La Conga (“alguns citados no livro do Ruy Castro, ‘A noite do meu bem’, como acabo de verificar”), tempo dos famosos musicais de Carlos Machado, como “Banzo Ayê” e do emblemático “Orfeu da Conceição”, de Vinícius de Moraes, “que se intitulava ‘o branco mais preto do Brasil’ e criou o sub-estilo musical batizado como ‘afro-samba’”.

“A impressão que tenho disso é que tudo se resume na busca pelo exótico, sem medir consequências. Assim, o comércio de bens culturais chegava e ainda chega a esses ‘lugares de ninguém’, mesmo ao outrora infecto e repulsivo ambiente da cozinha, antes interdito às pessoas da família patriarcal, pois era parte da senzala, embora ainda dentro da casa-grande”, sustenta Nei Lopes. “E agora, com a moda da gastronomia, a cozinha passou a espaço de excelência; mas a gente não encontra nenhum negro entre os chefs de renome. Da mesma forma, isso aconteceu com o samba, a capoeira, o candomblé, a umbanda. E, no meu entender, é explicado por um nome: APROPRIAÇÃO indevida, ou indébita, para ficar mais jurídico”.

Em artigo intitulado “Para onde foi a senzala?”, publicado na revista Zum, o historiador Maurício Lissovsky, professor da Escola de Comunicação da UFRJ, provocou um questionamento sobre a banalização do termo, citando restaurantes e até mesmo motéis batizados com o nome. O que motivou a reflexão foi a última edição do clássico “Casa-Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, que aboliu a imagem da escravidão da capa, mantendo apenas a casa senhorial. “O restaurante e o motel são as novas faces da senzala. Onde antes havia dualidade e tensão, agora há unidade e promessa de gozo”, critica.

Adriana Barsotti

É jornalista com experiência nas redações de O Estado de S.Paulo, IstoÉ e O Globo, onde ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo com a série de reportagens “A história secreta da Guerrilha do Araguaia”. Pelo #Colabora, foi vencedora do Prêmio Vladimir Herzog, em 2019, na categoria multimídia, com a série "Sem Direitos: o rosto da exclusão social no Brasil", em um pool jornalístico com a Amazônia Real e a Ponte Jornalismo. Professora Adjunta do Instituto de Arte e Comunicação Social (Iacs), na Universidade Federal Fluminense (UFF), é autora dos livros “Jornalista em mutação: do cão de guarda ao mobilizador de audiência” e "Uma história da primeira página: do grito no papel ao silêncio no jornalismo em rede". É colaboradora no #Colabora e acredita (muito!) no futuro da profissão.

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10 comentários “Escravidão à mesa

  1. Daniela Campos disse:

    Me mudei para Alto de Pinheiros em 1974, desde então o Senzala faz parte da minha vida. Esse restaurante/lanchonete pra mim é sinônimo de alegrias, encontros e ótima comida a preços razoáveis.
    Ali aconteciam vários dos nossos almoços de Domingo, lanches de fim de tarde na minha infância. Na adolescência era O lugar para irmos a pé ou de bicicleta, certos que comeríamos algo gostoso em um lugar agradável , mais uma vez está o restaurante associado a felicidade. Quando comecei a dirigir, o Senzala era o porto seguro para aquele lanche tarde da noite perto de casa, muitas risadas e mesas grandes com amigos, sempre saindo satisfeitos com a qualidade o atendimento e preços. O Senzala na minha família (que não é de São Paulo) é lugar de encontros: , precisa de mesa grande? , onde tomar um chope rápido e gostoso?; almoço pra família toda sem gastar uma fortuna? ; onde todos fiquem satisfeitos? A resposta unânime é o Senzala.
    Hoje em dia moro fora do Brasil e sempre que vou a São Paulo o Senzala é escala necessária, além dos sabores continuarem incríveis é o lugar da memória emocional feliz. Meu pai mora há 50 anos em SP, hoje idoso, encara este lugar como praticamente sua sala de jantar, se sente acolhido pela comida boa e serviço simpático.
    Diante de todas essas boas memórias , de um estabelecimento comercial que acompanhamos crescer e se atualizar em nível de serviços sem nunca perder a qualidade, sinceramente acho a discussão sobre o nome irrelevante. O Senzala sempre vai morar no meu coração, com esse nome mesmo!! Como aquele parente que tem um nome muito estranho, mas como você conhece e ama desde pequeno você acha esse nome a coisa mais linda do mundo.
    Essa história toda para mostrar que um nome que remeteria naturalmente a algo ruim, no meu caso remete a coisas boas.
    O restaurante existe há 47 anos, desde uma época em que o politicamente correto não era tão importante para o sucesso de uma marca . Prosperou e apesar do nome continua um sucesso. Fica a questão para o marketing e marcas: o que é mais importante a história e a qualidade de serviços ou o nome?

    • Vinicius disse:

      As pessoas so sabem olha o lado ruim das coisas com tantos nomes pra colocá colocaram senzala por que ? Garanto que viram algo bom senzala significa alojamento e moradia dor e sofrimento eles passaram foram nas maos dos coronéis e capitães do mato trabalhando sem receber vivendo no sofrimento os críticos querem o que? deixa a história morrer e hj em dia todo mundo gosta de ir no bar no restaurante são lugares mais frequentados do mundo a senzala antiga hj se tornar um lugar pra vc ir sua familia se divertir parabens para o dono do senzala ainda irei visitar

  2. Bruna disse:

    Que comentário mais infeliz, Daniela. A questão não é ao redor das suas memórias ou do chamado POLITICAMENTE CORRETO que você mencionou. Vai estudar um pouquinho de história, amore. O nome é PÉSSIMO, nem um pouco acolhedor e desrespeita nossos antepassados (sim, meus e seus), que sofreram em senzalas verdadeiras.

    Acho incrível como as pessoas interpretam as coisas…como levam tudo de forma tão leviana. Podem manter o seu lugar maravilhoso de ótimas recordações, mas NÃO COM ESSE NOME INDIGESTO.

  3. Hylton Sarcinelli Luz disse:

    Gostei muito da matéria, absolutamente pertinente colocar em debate a “glamourização” de valores e práticas que ofendem a dignidade humana, que enaltecem o que deve ser motivo de crítica permanente pelo que suscita. O fato do vivermos tempos diferentes e do nome do local não ser mais empregado para locais presentes, a sua evocação não pode ser descolada das práticas, dos valores e dos conceitos que vigiam e que hoje são reputados como abomináveis e ofensivos aos princípios que orientam o conceito de Direitos Humanos Universais.
    Concordo absolutamente com o comentário que me antecede, da Bruna, pois o que está em pauta não é a qualidade dos serviços prestados, ou do ambiente, em sua capacidade de gerar boas e prazerosas lembranças, muito menos a simpatia dos proprietários, o que é cabível debater é desconsiderar a carga de dores, pesares e desumanidade presente nesta referência. Parece-me, como disse a Bruna, que a Daniela foi infeliz em não separar as boas lembranças de sua vida pessoal, da simbologia do nome com inaceitáveis práticas do passado,

  4. cristiane martins gomes disse:

    “A carne negra é a mais barata do mercado”, disse Elza Soares uma vez. A morte de milhares, milhões de negros escravizados, virou mimimi. Não merece sequer a alcunha de genocídio ou holocausto. Não temos direito a sobrenomes ancestrais. E o pouco que nos sobra é ridicularizado em situações como essas. Em que um termo que deveria ser motivo de vergonha nacional vira modinha sem a menor ligação com o sentido original. É cult branco querer compartilhar o meu turbante. Pena que que não querem compartilhar as vagas em prisões, favelas e indices de mortalidade violenta nos quais o negro lidera as estatísticas. São nossas senzalas contemporâneas que ninguém de fora quer se apropriar.

  5. Sebastião Amaro de Jesus disse:

    Passei em frente desse restaurante hoje devido a um desvio na Marginal Pinheiros (a questão da Ponte em manutenção).
    Estranhei, naturalmente esse nome “Senzala”.
    Pesquisei no Google algo do tipo: Como alguém pode achar normal um restaurante granfino com nome Senzala… E cheguei nessa matéria acima… Que bom que não sou o único!!
    Penso que o nome é fruto de ignorância e mal gosto.
    Quando vi o nome, pensei comigo se há ali funcionários negros que têm noção de que trabalham numa senzala ainda hoje!!
    Mas isto tudo não deve ter sentido para o dono dali e para uma boa parte da classe média e alta de São Paulo e do Brasil. Eles são uma elite econômica apenas. Nunca serão uma elite de fato, o tipo de elite que levaria o país para frente, incluindo todos os brasileiros. Essa elite não temos.

  6. Alexandre Wesley disse:

    Até acho que muita gente não tem má intenção ao fazer comentários como os que li acima. Eu prefiro atribuir isso a ignorancia em vez de a maldade, mas vamos esclarecer: O problema de dar esse nome para um restaurante ou qlqr estabelecimento sem fazer uma conexão histórica relevante é que vc está banalizando o sofrimento de milhões de pessoas em um dos episódios mais tristes da história da história da raça humana que passaram pelo pior período de suas vidas em lugares com esse nome.
    A manifestação mencionada na reportagem foi acertadíssima ao trazer placas com “Restaurante Auschwitz” pq traz a reflexão do que se passa na cabeça de qlqr pessoa com bom senso ao se deparar com um local com esse nome: pq a referencia ao holocausto choca e a escravidão passa batido? Eu digo o porquê: Os dois são crimes contra a humanidade mas só um dá o status de luxo, riqueza, elite, não tragédia, vergonha. A referência ao local onde se “armazenava” uma carga valiosa até o final do século 19 remete a algo luxuoso e rústico, exótico, com foco num excelente serviço. É quase uma brincadeira pois, visto q hoje ninguém é escravo, tudo bem chamar um lugar de senzala. Mas está errado! É uma vergonha, na verdade, que em pleno século 20 ainda tenha gente pra defender a existência de um lugar com esse nome!

  7. renato lima disse:

    Que artigo besta! Totalmente fora de época e contexto… O senzala existe há uns 50 anos. Vamos também queimar todos os exemplares de “Casa Grande & Senzala”!

  8. Marcelo disse:

    Os donos de negocio ja nao podem nem escolher um nome ao seu proprio negocio. A patrulha raivosa ataca novamente. Totalmente desocupados e sem terem o que fazer da vida fiscalizam coisas aleatorias, arrumam encrenca com pessoas desconhecidas e tentam como verdadeiras metralhadoras de rotulos ditar regras sobre o que pode e o que nao pode de acordo com suas ideias.
    A internet fez isso – pessoas frustradas tentando exibir desesperadamente algum tipo de virtude, mesmo que a mesma seja por puro interesse de fazer uma especie de “marketing pessoal”.
    Os tiranos patrulham ate mesmo pensamentos hoje em dia, e caso voce nao pense como desejam, se prepare, pois a metralhadora de rotulos esta armada e apontada para voce!
    Pessoas vazias, que se prendem a teorias e geram problemas por quaisquer motivos…verdadeiros Don Quixotes

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