Ensino de culturas africanas: lei enfrenta resistências

Mulheres em Burkina Faso., na África. Foto: Philippe Roy/ Aurimages

Setores ligados a igrejas evangélicas pentecostais protestam até contra aulas de capoeira

Por Fernando Molica | ODS 4 • Publicada em 3 de agosto de 2017 - 08:17 • Atualizada em 6 de agosto de 2017 - 13:35

Mulheres em Burkina Faso., na África. Foto: Philippe Roy/ Aurimages
Mulheres de um povoado de Burkina Faso: lei que determina o ensino da história e cultura africanas no Brasil é aplicada com mais vigor nas escolas públicas. Foto: Philippe Roy/ Aurimages

Sancionada em 2003 pelo então presidente Lula, a lei que determina o ensino de história e cultura africanas e afro-brasileiras nas escolas ainda enfrenta resistências, mas, ao contrário de outras iniciativas legais, não ficou apenas no papel. Assessora de projetos da organização Ação Educativa,  a educadora e socióloga Ednéia Gonçalves afirma que os avanços são muito significativos.

Ressalta, porém, que ainda há os que tratam a lei como uma orientação, e não como uma obrigação, fingem não saber que seus artigos modificaram a Lei de Diretrizes e Bases da educação brasileira e que, portanto, não podem ser relativizados. “Trata-se de uma política de Estado, não de governo”, frisa.

Já houve diretores de escolas particulares que tentaram justificar o descumprimento da lei alegando que seu ‘público negro’ era muito pequeno. Isso deveria reforçar a necessidade do tema

De modo geral, afirma, a lei tem sido implementada com mais vigor na área pública, ainda que de forma desigual. Segundo ela, qualquer rede vai dizer que cumpre as normas, mas há variações bem significativas entre elas. Cita que, em Minas Gerais, há uma preocupação de demonstrar a influência africana em diferentes campos do conhecimento e da produção científica, um trabalho que classifica de “afroconsciência”.

Crianças dançam em um festival na Nigéria: falta de informações sobre a África nas escolas brasileiras ainda é muito grande. Foto: Tim Graham / Robert Harding Heritage

“O problema é que a educação brasileira é eurocêntrica.  Na maioria dos casos, a África negra surgia nas escolas a partir da escravidão, a falta de informações sobre o continente é muito grande”, destaca.

Pelo espírito da lei,  os conteúdos são distribuídos dentro de matérias tradicionais, como história, geografia e artes, uma lógica que prevê uma integração entre os saberes produzidos em diversas partes do mundo. Ela afirma que, antes, a África só começava a ser estudada a partir dos processos de escravidão, como se nada tivesse ocorrido antes em todo o continente.

A formação de profissionais capazes de ministrar as aulas é um outro problema que, segundo Ednéia, começou a ser vencido com a criação, em várias universidades, de núcleos de estudos afro-brasileiros, mas ainda há muitos hiatos nos cursos de licenciatura, voltados para o magistério. Ela cita também que livros didáticos adotados pelo Ministério da Educação passaram a incluir informações sobre o tema, o que facilita o trabalho nas escolas.

Coordenador de Áreas de Conhecimento da Secretaria de Educação do Estado do Rio, Fabiano Farias de Souza diz que as determinações das duas leis – há uma outra, de 2008, que incluiu a obrigatoriedade de ensino de culturas indígenas – integram o currículo base, que tem a finalidade de orientar professores para os itens que não podem ser esquecidos.

Segundo ele, o detalhamento é tão minucioso que estabelece os bimestres em que cada tema deve ser abordado. A compreensão da diversidade política e cultural da África e discussão dos conceitos de diáspora e tráfico de escravos devem, por exemplo, ser trabalhados no terceiro bimestre do primeiro ano do Ensino Médio.

Secretário de Educação do Estado do Rio, Wagner Victer afirma que as exigências legais estão previstas no currículo de toda a rede, que atende 750 mil alunos, 500 mil do Ensino Médio. De acordo com ele, não há “resistências institucionais” às propostas. Admite, porém, que a adesão às exigências legais varia de acordo com as convicções pessoais de cada professor. Evangélicos podem, por exemplo, ter maior resistência a certos pontos de culturas africanas –  algo semelhante, compara, a professores que questionam o aquecimento global ou a teoria da seleção natural de Charles Darwin.

Roda de Capoeira, em Salvador: há quem proteste contra as aulas do esporte nas escolas, por razões religiosas. Foto: Tibor Bognar / Photononstop

Ednéia é mais enfática neste ponto. Frisa que setores ligados a igrejas evangélicas pentecostais reagem ao ensino de mitologias de origem africana – apresentadas, ressalta, de maneira não religiosa – e implicam até com questões muito específicas. Há os que protestam contra aulas de capoeira porque o esporte envolve o uso de tambores, identificados com religiões de matrizes africanas. “A ignorância de alguns gestores impede uma maior presença de culturas do continente”, reclama.

Ela ressalta que muitas escolas, especialmente da rede particular, tentam limitar o ensino de história e cultura africanas a datas específicas, como o 13 de Maio (Dia da Abolição)  ou 20 de Novembro (Dia da Consciência Negra). “Já houve diretores de escolas particulares que tentaram justificar o descumprimento da lei alegando que seu ‘público negro’ era muito pequeno. Isso deveria reforçar a necessidade do tema”, destaca.

Para Ednéia, o respeito às leis é fundamental no combate ao racismo ainda tão presente na sociedade brasileira. “A escola é matriz de transformações, não é apenas local de reprodução de conhecimento”, conclui.

Fernando Molica

É carioca, jornalista e escritor. Trabalhou na 'Folha de S.Paulo', 'O Estado de S.Paulo', 'O Globo', TV Globo, 'O Dia', CBN, 'Veja' e CNN. Coordenou o MBA em Jornalismo Investigativo e Realidade Brasileira da Fundação Getúlio Vargas. É ganhador de dois prêmios Vladimir Herzog e integrou a equipe vencedora do Prêmio Embratel de 2015. É autor de seis romances, entre eles, 'Elefantes no céu de Piedade' (Editora Patuá. 2021).

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