Mariana pode ter nova tragédia

Bento Rodrigues e o acidente da Samarco. Foto de Gustavo Basso/ AFP

Temporada de chuvas ameaça levar lama retida nas margens do Rio Doce e contaminar a água da região

Por Liana Melo | ODS 11ODS 15ODS 6 • Publicada em 25 de outubro de 2016 - 08:50 • Atualizada em 4 de julho de 2019 - 19:47

Bento Rodrigues e o acidente da Samarco. Foto de Gustavo Basso/ AFP
Bento Rodrigues e o acidente da Samarco. Foto de Gustavo Basso/ AFP
Bento Rodrigues sumiu do mapa depois do acidente da Samarco. Foto de Gustavo Basso/ AFP

Às vésperas do primeiro ano da maior tragédia ambiental do Brasil e a mais relevante do mundo envolvendo rejeitos minerais, um novo alerta máximo está prestes a ser acionado em Mariana. Com o início do período chuvoso, que começa em novembro e se intensifica entre janeiro e fevereiro, o risco de um novo carreamento de sedimentos e de rejeito para os rios é visto como inevitável. Ambientalistas, moradores, procuradores e técnicos do governo acusam a Samarco, controlada pela brasileira Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton, de não ter aproveitado o período seco (que termina em outubro) para fazer as intervenções necessárias nos cursos d`água afetados e intensificar os trabalhos de contenção e manejo dos rejeitos.

“Em todas as intervenções vistoriadas, segue evidente que a estratégia da empresa é pela não remoção dos rejeitos”, concluiu o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), que está à frente de uma força-tarefa, constituída em abril passado, para monitorar a região. Hoje, foi divulgado o relatório final do órgão. A constatação final dos técnicos do Ibama é que a empresa vinha “descumprindo sistematicamente o cronograma de obras”, avalia André Sócrates, um dos responsáveis pela Operação Áugias.

Em todas as intervenções vistoriadas, segue evidente que a estratégia da empresa é pela não remoção dos rejeitos

Há cerca de um ano, exatamente no dia 5 de novembro de 2015, o relógio marcava 15h30, quando o rompimento de barragem da Samarco desestabilizou a vida de 3 milhões de pessoas – população que vive na bacia do Rio Doce, que banha os estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Dezenove delas morreram. A vila de Bento Rodrigues, o primeiro povoado na rota do vazamento, sumiu do mapa em menos de meia hora. Virou um cidade fantasma. A lama chegou no oceano Atlântico, após percorrer 680 quilômetros rio abaixo. Foram recolhidas 14 toneladas de peixes mortos. A degradação atingiu não menos que 240,88 hectares da Mata Atlântica. As imagens da tragédia foram vistas mundo afora, os atingidos ainda não esqueceram o barulho ensurdecedor do rompimento da barreira, os impactos socioambientais terão vida longa e um segundo capítulo da tragédia está prestes a se repetir na região.

O prazo para construção e operação de estruturas emergenciais de contenção de sedimentos e sistemas de tratamento da área contida entre a barragem de Fundão e a Usina Hidrelétrica Risoleta Neves (Candonga) termina em 31 de dezembro. A construção de alguns diques, como o DS4, por exemplo, virou o pomo da discórdia. Proprietários de terras localizadas perto da barragem de Fundão terão que ceder seus terrenos para a construção do dique. Para a Samarco, a obra evitaria um novo carreamento de rejeitos no período chuvoso; para o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), que ajuizou um ação civil pública contra o projeto, a empresa precisa criar “alternativas à construção de um dique, que não afetem o direito de propriedade e o direito de acesso ao território coletivo por parte dos atingidos”.

A mineradora, segundo o promotor Guilherme Meneghin, teria estudado somente a possibilidade da construção de um dique, “olvidando-se de analisar outras soluções que não afetassem a propriedade dos atingidos e o acesso ao território coletivo, como a retirada direta do material, a deposição na cava que está sendo criada para reativação das operações da empresa ou mesmo a utilização de outros aparatos”.

Ainda restam 25,1 milhões de metros cúbicos de lama depositados nos cursos d´água e margens. O lamaçal está concentrado entre a barragem de Fundão e Candonga, e em Bento Rodrigues. O que, até então, vinha sendo carregado de forma homeopática rio abaixo, poderá descer em uma nova enxurrada de lama a partir de novembro, quando começa o período chuvoso. Ainda que o volume de rejeito venha a ser menor que os 40 milhões de metros cúbicos de rejeito de lama que vazaram de Fundão, o equivalente a dez vezes o volume de água da Lagoa Rodrigo de Freitas, os técnicos do Ibama estão em alerta. Com o início do período chuvoso e o atraso nas obras de contenção e remoção de rejeitos de minério, a previsão é que 4,3 milhões de metros cúbicos de rejeitos devem chegar à Usina de Candonga, até março de 2017. A capacidade da hidrelétrica de conter é de no máximo 2 milhões de metros cúbicos, que passarão pelas barragens e escoaram novamente pelo Rio Doce, chegando ao litoral do Espírito Santo.

O presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce (CBH-Doce), Leonardo Deptulski, corrobora com a preocupação e admite que o “aumento da turbidez da água é um efeito inevitável no curto prazo”. O professor Paulo Rosman, da área de Engenharia Costeira da COPPE/UFRJ, minimiza o risco e descarta uma “nova tragédia ambiental”

O paradoxo da mineração

Uma segunda tragédia ambiental em Mariana e adjacências vai piorar ainda mais “o desastre econômico que estamos vivendo”, avalia o prefeito de Mariana, Duarte Júnior (PPS), comentando que o acidente ainda criou dificuldades adicionais, além dos estragos ambientais. A cidade vem vivendo uma situação de penúria financeira. A queda da barragem de Fundão evidenciou o paradoxo vivido pela cidade. A dependência da extração mineral é tão ostensiva que altera a paisagem e impacta profundamente, para o bem e para o mal, a economia local. A atividade mineradora responde por 80% da arrecadação do município. Com o acidente, deixaram de entrar nos cofres de Mariana 4 milhões de reais mensais provenientes da arrecadação.

Será uma segunda tragédia ambiental, que vai piorar ainda mais o desastre econômico que estamos vivendo

A interrupção das atividades de mineração vem ameaçando empregos e a taxa dos que já não têm como trabalhar cresceu dez vezes desde o acidente. Hoje, são mais de 3 mil pessoas desempregadas, em uma população de 59 mil. O índice de desemprego antes do acidente era de 300 trabalhadores. O acidente ceivou vidas, provocou um prejuízo ambiental incalculável e ainda destruiu 62 patrimônios públicos, entre escolas, postos de saúde e pontes. Esse legado da Samarco caiu no colo do novo prefeito de Mariana. Curiosamente, o assunto passou à margem dos discursos dos postulantes ao cargo, o que acabou garantindo a reeleição de Duarte na prefeitura.

Condenação em massa

O cerco em torno da Samarco está se fechando, à medida que se aproxima a data do acidente. No último dia 20, o MPMG denunciou 22 pessoas, das quais 21 delas por homicídio qualificado com dolo eventual – quando se assume o risco de matar – e ainda quatro empresas pelo rompimento da barragem de Fundão: além da Samarco, suas parceiras no negócio, a Vale e a BHP, e a VogBR. Apenas o engenheiro da VogBR não foi acusado de homicídio com dolo eventual. Ele vai responder, juntamente com a VogBR, pelo crime de apresentação de laudo ambiental falso. Todos os outros executivos, além de homicídio, vão responder ainda por crimes de inundação, desabamento, lesão corporal e crimes ambientais. São ao todo nove delitos ambientais. Os acusados podem ir a júri popular e, se condenados, terem penas de prisão de até 54 anos, além de pagamento de multa, de reparação dos danos ao meio ambiente e daqueles causados às vítimas.

Olhando em retrospecto e analisando o que teria provocado o acidente, o procurador da República José Adércio Leite Sampaio, autor da denúncia pelo MPMG, com base em depoimentos, lembrou que funcionários da Samarco notaram trincas no maciço da barragem de Fundão em 2014 – um laudo feito por uma auditoria independente acabou chegando à mesma conclusão que o inquérito da Polícia Civil sobre a causa do rompimento da barragem, ou seja, liquefação, quando há acúmulo de água. Seriam, segundo ele, sinais de pré-ruptura, de acordo com depoimento dado por engenheiros da empresa. “A empresa usava ‘esparadrapos estruturais’ ao invés de dar respostas contundentes aos problemas da barragem”, concluiu o procurador, afirmando que teria havido um “sequestro da segurança em busca do lucro”.

A Samarco refutou a denúncia alegando que a “empresa não tinha qualquer conhecimento prévio de riscos à sua estrutura”. A mineradora disse ainda que a barragem era “regularmente fiscalizada, não só pelas autoridades como também por consultores internacionais independentes” e que a “segurança sempre foi uma prioridade” para a empresa.

 

Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

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