Após sobreviver no inferno, Racionais MCs ganham asas

O grupo em 2001, no Capão Redondo, periferia de SP, onde tudo começou (Foto: divulgação/Klaus Mitteldorf)

Exposição marca 30 anos do grupo de rap mais respeitado do país, que deu voz à periferia e sempre investiu na independência

Por Carlos Albuquerque | ODS 9 • Publicada em 9 de junho de 2017 - 17:32 • Atualizada em 13 de junho de 2017 - 13:53

O grupo em 2001, no Capão Redondo, periferia de SP, onde tudo começou (Foto: divulgação/Klaus Mitteldorf)
O grupo em 2001, no Capão Redondo, periferia de SP, onde tudo começou (Foto: divulgação/Klaus Mitteldorf)
O grupo em 2001, no Capão Redondo, periferia de SP, onde tudo começou (Foto: divulgação/Klaus Mitteldorf)

Tem um rolo na exposição dos 30 anos dos Racionais MCs, em exibição na Red Bull Station, em São Paulo. Parrudo, com aproximadamente 90 metros de extensão e formado por inúmeros papéis de carta, ele deixa visível, na sua extremidade, uma frase: “Ainda é pouco para falar o quanto eu amo todos vocêis (sic). Beijos. Eu amo vocêis (sic)”.  A assinatura e o endereço vêm em seguida: Cristiane Pinto dos Santos.  Vale das Canas. Jardim Manacá. SP.

Declarações de amor de fãs para seus ídolos são comuns no mundo pop. Só que os Racionais MCs não são Luan Santana.  Surgido na periferia de SP, no esquentado bairro de Capão Redondo, no final dos anos 1980, o grupo formado por Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e DJ KL Jay atravessou três décadas de atividade mantendo seu discurso e sua postura intactos, impondo-se como o mais poderoso e respeitado nome do rap nacional. Ao longo desse período – durante o qual lançou uma série de álbuns independentes, retratando a violência e o racismo ao seu redor – raramente abriu sorrisos para a indústria do entretenimento.

Os Racionais foram pioneiros ao criar um ecossistema próprio, gerindo e promovendo sua carreira de forma independente, muito antes de outros artistas fazerem isso

Protegida por um vidro, a extensa e apaixonada carta de Cristiane, cedida pelos próprios Racionais, ajuda a quebrar um pouco desse jeito sisudo. Junto com os outros itens da exposição – batizada “Racionais MCs: três décadas de história”, em cartaz até 17 de junho, como parte do Red Bull Music Academy Festival – ela revela um pouco mais do até então fechado universo do grupo que, como diz o título de um dos seus discos, sobreviveu no inferno.

Livros que fizeram a cabeça dos Racionais MCs na exposição na Red Bull Music Academy (Foto: Fabio Piva/Red Bull Content Poll)
Livros que fizeram a cabeça dos Racionais MCs na exposição na Red Bull Music Academy (Foto: Fabio Piva/Red Bull Content Poll)

“Capão Redondo era e ainda é uma das áreas urbanas mais violentas do mundo. A gente pode aprender muito sobre a periferia de uma grande cidade como São Paulo através do trabalho dos Racionais”, conta Fernando Velásquez, diretor artístico do espaço e curador da mostra . “Além disso, o grupo foi um pioneiro ao criar um ecossistema próprio, gerindo e promovendo sua carreira de forma independente, muito antes de outros artistas fazerem isso. O que tentamos fazer na exposição foi narrar um pouco dessa história, mostrando respeito pela dimensão do grupo”.

Pelos dois andares do casarão reformado, localizado no bairro da Bela Vista, desfaz-se parte da “nuvem de mistério” que envolvia a banda, com diz o curador no texto de abertura da mostra. Lá estão desde ferramentas de criação – como os primeiros samplers e baterias eletrônicas usados por KL Jay para criar as batidas – até rascunhos, feitos em folhas de caderno escolar, de letras como “Você me deve”.  Estão também recortes de jornais, vídeos e imagens diversas, a maior parte feita por Klaus Mitteldorf, fotógrafo oficial dos Racionais.

“A exposição busca valorizar a memorabilia e mostrar como ela se relaciona com a história da banda”, diz Akin Bicudo, curador do festival. “Tentamos desmistificar o quadro geral, mas também valorizar os pequenos detalhes em torno dos Racionais”.

KL Jay, em show em SP, em 2014 (Divulgação/Klaus Mitteldorf)
KL Jay, em show em SP, em 2014 (Foto: Divulgação/Klaus Mitteldorf)

Pendurados nas paredes da Station, diversos discos de ouro fazem a moldura para a cronologia da banda, que lembra as turbulentas relações dos seus integrantes com a polícia (os quatro foram presos em 1994, após um show ao ar livre na capital, acusados de incitação à violência). Num canto, uma estante exibe alguns dos livros que fizeram a cabeça dos Racionais, como “A vida dos escravos no Rio de Janeiro”, de Mary Karasch, “Carandiru – Registro geral”, de Mario César Carvalho, e as biografias de Tim Maia e Nelson Mandela.

O espaço abriga também curiosidades como o certificado de posse de armas e o diploma de faixa preta de Ice Blue, além de diversos tênis e roupas usadas pelos rappers (no caso de Brown, várias com o escudo do Santos Futebol Clube, seu time de coração). “A reunião desse material envolveu também muitos familiares da banda, o que acabou criando um ambiente de camaradagem entre todos nós”, lembra Velásquez. “E acho que o momento mais legal que vivemos foi a visita da banda para conferir a mostra antes da abertura. Todos ficaram muito emocionados ao rever, pela primeira vez, a sua própria história.  Não tem satisfação maior que testemunhar isso”.

Carlos Albuquerque

Carlos Albuquerque (ou Calbuque) é jornalista de cultura, biólogo, DJ (daqueles que ainda usam vinil) e ocasional surfista de ondas ridiculamente pequenas. Escreve com a mão esquerda e Darwin é seu pastor.

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