Feche os olhos e veja

Audiodescrição abre janela de inclusão social para quem tem deficiência visual

Por Ursula Alonso Manso | ODS 9 • Publicada em 10 de novembro de 2016 - 08:27 • Atualizada em 10 de novembro de 2016 - 12:29

Clique no vídeo abaixo e feche os olhos para assisti-lo. Isso mesmo: feche os olhos.

Se a sensação foi parecida à de uma conversa ao celular picotando – daquelas em que se perde trechos da fala do interlocutor e o discurso termina carente de sentido –, você já entendeu a importância da audiodescrição para quem tem deficiência visual.

Descrever aquilo que os olhos vêem é o que motiva Diego Oliveira. Nosso primeiro contato foi num daqueles seminários perfeitos para curar insônia. E foi a visão do rapaz de testa alta e bigode no estilo Salvador Dali que chamou minha atenção. Mas o que ele tinha a dizer se mostraria mais importante que a sua aparência: “Acredito no acesso à informação pelo diálogo de pessoas, de mídias e de conteúdo, meu foco é a acessibilidade da produção cultural”.

Diego Oliveira e seu bigode no estilo Dali. Foto Divulgação
Diego Oliveira e seu bigode no estilo Dali. Foto Divulgação

São 45 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência no Brasil. Estimativas falam entre 10% e 15% da população brasileira com algum grau de deficiência visual. Oliveira, 27 anos, não tem nenhum deficiente visual na família. Nem tinha nenhum amigo cego. Até conhecer Sara, no evento Campus Party, em São Paulo, em fevereiro de 2012.

Acredito no acesso à informação pelo diálogo de pessoas, de mídias e de conteúdo, meu foco é a acessibilidade da produção cultural.

Ele conta que estava saindo com amigos para ir ao cinema quando Sara chegou. E, sem saber o que fazer, convidou-a para acompanhá-los. Foi também sem saber direito o que fazia que se sentou ao seu lado e começou a descrever as cenas do episódio I de Star Wars em 3D, que ainda por cima era legendado.

Ao final do filme, Sara disse que já tinha ido ao cinema outras vezes. Aquela, porém, havia sido a melhor audiodescrição que alguém lhe fizera. A partir daí ele começou a se perguntar como pessoas cegas podem ter acesso a conteúdo na área de cultura, hoje, cada vez mais, visual.

Oliveira começou estudando audiodescrição à distância. Depois, frequentou aulas na Fundação Dorina Nowill, para Cegos, de São Paulo, e fez o curso de certificação internacional de Joel Snyder, uma referência em audiodescrição.

Uma professora cega ouviu sua ideia e o incentivou a criar um serviço de audiodescrição na internet, dizendo “vá em frente, por favor, a gente precisa disso”. Ele foi. E largou a faculdade de Publicidade para montar a Legenda Sonora – cujo conteúdo é totalmente gratuito, diga-se de passagem.

No final de 2012, quando a Legenda Sonora foi ao ar, nenhuma outra empresa brasileira oferecia audiodescrições de vídeos na internet. Oliveira ainda chegou a bater à porta de empresas de comunicação para oferecer os serviços e buscar patrocínio. “Mas ninguém nunca sabe informar quem cuida disso na empresa”.

O primeiro DVD audiodescrito no Brasil foi Irmãos de Fé, lançado em 2005. Desde 2011, as TVs abertas que operam sinal digital são obrigadas, pela Portaria nº 188, a transmitir programas com audiodescrição.

Segundo a mesma Portaria, o cronograma para a TV começa com duas horas semanais e deve ir aumentando, até chegar a 20 horas semanais. As TVs por assinatura, que precisam transmitir integralmente os canais da TV aberta local, também têm que transmitir a audiodescrição.

Na prática, a Globo tem seis horas por semana de filmes com audiodescrição, distribuídas entre Tela Quente, Temperatura Máxima, Supercine e Domingo Maior. O SBT oferece oito horas e 30 minutos, restritas ao seriado Chaves. Na Band são cinco horas, entre o infantil Band Kids e o seriado “Como conheci sua mãe”.

A TV Cultura tem sete horas de audiodescrição, entre os filmes do “Clube do Filme” e do “Mestres do Rio”, o documentário “Cultura Memória” e o seriado “Pedro e Bianca”. A Record, por sua vez, somente três horas dos infantis “Desenhos Bíblicos” e Pica-Pau.

Recentemente, a Netflix fez a audiodescrição da série Demolidor. Mas somente em inglês. No país da novela, não há uma única produção audiodescrita nas emissoras brasileiras. Também é difícil vê-las informando sobre como acessar a audiodescrição. “As emissoras não divulgam a programação com audiodescrição porque não têm interesse em aumentar a demanda, se limitam a cumprir a lei”, afirma Oliveira. “Se o público pedir mais, vai ser um gasto a mais para a emissora”.

O único concorrente do Legenda Sonora na web é o site Filmes que Voam, que, além da audiodescrição, oferece filmes com legendas em Libras. Em audiodescrição, porém, o catálogo do Filmes que Voam soma apenas 25 títulos, sendo 24 deles para crianças. Sozinho, Oliveira já fez audiodescrição em português de cerca de 100 vídeos, sempre privilegiando pedidos dos internautas.

A primeira plataforma da Legenda Sonora foi o YouTube. Até que o canal foi retirado do ar por violar direitos autorais. Para manter o serviço, Oliveira desenvolveu o próprio site e passou a separar o que é imagem do áudio. Ele descarta as imagens do vídeo original (afinal, elas não têm nenhuma serventia para o público) e cria um podcast com o áudio, acrescido da audiodescrição. É possível, inclusive, baixar o conteúdo para assistir depois.

Em julho de 2015, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, que entrou em vigor em janeiro. E diz: “É vedada a recusa de oferta de obra intelectual em formato acessível à pessoa com deficiência, sob qualquer argumento, inclusive sob a alegação de proteção dos direitos de propriedade intelectual”.

De acordo com a lei, as salas de cinema têm prazo de dois anos para oferecer, em todas as sessões, recursos de acessibilidade para a pessoa com deficiência. É aí que entra o que há de mais moderno, hoje, em termos de audiodescrição, os aplicativos para celular.

O mercado brasileiro conta com o MovieReading, que opera em parceria com a empresa de audiodescrição Iguale. Funciona assim: o usuário baixa o aplicativo, acessa a lista de filmes, escolhe um e baixa a audiodescrição. Quando o filme começa, é só sincronizar. O aplicativo capta o som do filme e começa a descrever as imagens em tempo real.

Baixei MovieReading há mais de um mês. O aplicativo oferecia o total de 15 filmes – o mais popular deles, Tô Ryca. Esta semana entraram outras duas audiodescrições no catálogo.

“A desvantagem do aplicativo é que, por estar vinculado a uma empresa de audiodescrição, ele fica restrito ao conteúdo dessa empresa”, opina Oliveira. “Meu plano é lançar um aplicativo que use qualquer audiodescrição, independentemente da empresa que a fez. Qualquer empresa de audiodescrição poderia disponibilizar seu conteúdo no aplicativo”, sonha ele, que já acumula dívida de R$ 8 mil com a Legenda Sonora – vencedora do terceiro lugar na categoria serviços do Todos@Web – Prêmio Nacional de Acessibilidade na Web, em 2014.

Especialmente para o #Colabora, Oliveira fez a audiodescrição daquele nosso vídeo lá do começo desse texto. Então feche os olhos e tente “vê-lo” novamente. Agora, com os olhos de quem tem deficiência visual.

Ursula Alonso Manso

Carioca, Ursula Alonso Manso é jornalista e colabora com a revista Prazeres da Mesa. Come para viver e vive para comer - o que não significa, porém, que coloque qualquer coisa na boca. Na websérie "Brasil à Mesa", percorre de botecos a restaurantes com estrelas Michelin, sempre em busca do alimento justo, correto e, claro, saboroso.

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