Mulher não paga. Por quê?

Festa To Morro Land, onde os produtores acreditam que as mulheres devem ser tratadas como qualquer cliente. Foto de Divulgação

Machismo ou prática de mercado? A questão divide até as feministas

Por Gabriel Cassar | ODS 12 • Publicada em 16 de fevereiro de 2017 - 09:00 • Atualizada em 20 de fevereiro de 2017 - 17:24

Festa To Morro Land, onde os produtores acreditam que as mulheres devem ser tratadas como qualquer cliente. Foto de Divulgação
Festa To Morro Land, onde os produtores acreditam que as mulheres devem ser tratadas como qualquer cliente. Foto de Divulgação
Festa To Morro Land, onde os produtores acreditam que as mulheres devem ser tratadas como qualquer cliente. Foto de Divulgação

Mesmo local, mesma música e mesmo bar, mas preços distintos na hora de entrar. Afinal, por que algumas festas no Rio de Janeiro cobram valores diferentes de homens e de mulheres nos seus ingressos?

Na visão de algumas meninas que frequentam esses espaços, o machismo é a principal explicação.

– Entendo que os preços são diferenciados porque, infelizmente, vivemos numa sociedade machista, em que os homens são atraídos para as festas pela quantidade de mulheres que as frequentam – afirma Ana Julia Muller, estudante de 21 anos.

O pensamento é o seguinte: mulheres atraem homens, deixam a festa mais atraente. Por isso, devem pagar mais barato, porque já prestam um “serviço” para o evento, atraindo mais consumidores. O tratamento é de mercadoria mesmo. Inclusive, vejo isso muito nos nomes de algumas festas: “festa ELAS” ou “GIRLS NIGHT OUT”

– Tem uma clara intenção de lucro no ato. O preço mais baixo para as mulheres é uma forma de chamar os homens e, dessa forma, colocam os preços mais altos para eles – explica Rafaella Gonçalves, de 19 anos.

A advogada Victoria Perez, de 22 anos, enxerga um componente ainda mais primitivo dentro do argumento machista.

– O pensamento de quem se vale dessa política de diferenciação de preços para homens e mulheres é o seguinte: mulheres atraem homens, deixam a festa mais atraente. Por isso, devem pagar mais barato, porque já prestam um “serviço” para o evento, atraindo mais consumidores. O tratamento é de mercadoria mesmo. Inclusive, vejo isso muito nos nomes de algumas festas: “festa ELAS”, aquela antiga “GIRLS NIGHT OUT” (da extinta boate Praia), que só permitia a entrada de mulheres até meia noite e, em seguida, os homens eram “soltos” para “atacá-las”. Uma verdadeira selva.

Mas, afinal, o que pensam os produtores de festas?

– A diferenciação de preços é necessária no Rio e, honestamente, acho uma atitude zero machista. Existem vários fatores que levam à existência dessa diferenciação e nenhum deles diz respeito ao poder econômico do homem em relação à mulher. Muitos homens só vão às festas por causa das mulheres e pouco se importam com o que irá tocar, com a qualidade do evento, localização etc. Já as mulheres, muitas vezes, pedem ingresso VIP para os eventos (as bonitas, quase sempre) e isso fez com que se criasse a cultura do VIP para o público feminino”, diz Guilherme Macedo, sócio da Shake That Produções, empresa responsável pela realização de festas com grande apelo no Rio, como o Baile do Dennis, Só Track Boa, As Mina Pira, entre outras. “As mulheres bonitas pedem convite para elas, depois para as amigas e, quando você vai ver, já tem várias mulheres entrando de graça. Todas deixam para comprar em cima da hora, pois esperam ganhar o ingresso até o dia do evento. Se tem concorrência no dia, a festa mais “fraca” libera o VIP, atrapalha a venda da festa mais “forte”, que é obrigada a liberar os VIPs também. Então, se a gente coloca o ingresso feminino caro, as mulheres não pagam e optam por ir onde entram sem pagar nada. Se colocarmos o ingresso masculino barato também, perdemos dinheiro”.

Para os organizadores da Hashtag party, os custos do evento justificam a estratégia de preços. Foto Divulgação
Para os organizadores da Hashtag party, os custos do evento justificam a estratégia de preços. Foto Divulgação

– O planejamento de uma festa é algo que demanda tempo: tem que alugar o espaço, contratar atrações, equipe de bar, som, estrutura, limpeza, banheiro, grade, baleiro, lugar de comida etc. Isso tudo tem um valor. E aí, o que acontece: você põe ingressos à venda, e eles não vendem. Essa planilha tão planejada, se chega duas semanas antes do evento e ele não está vendendo, tem que ser alterada. Aí, o que você faz? Abre uma “lista amiga” no evento, falando que mulher vai pagar o valor do primeiro lote (para não prejudicar quem já comprou) e o homem vai pagar um pouquinho mais barato do que o valor atual, que normalmente é muito mais acima. Também dá para ganhar dinheiro com o bar: “vipa” vários homens que você sabe que consomem, e “vipa” mulheres que você sabe que vão entrar no camarote, e que vão consumir a bebida do homem. Dessa forma, eles vão acabar comprando e gastando mais. Por isso tem essa diferença de preço – conta João Pedro Guerra, assistente de produção, que já trabalhou em eventos como a Hashtag party e o festival de música eletrônica Tomorrowland Brasil.

A diferenciação de preços é necessária no Rio e, honestamente, acho uma atitude zero machista. Muitos homens só vão às festas por causa das mulheres e pouco se importam com o que irá tocar, com a qualidade do evento, localização etc

Para Thiago Cortez, produtor das festas do To Morro Land e Funk Palooza, é difícil saber ao certo o motivo que leva à diferenciação de preços por gênero.

– É sempre complicado entrar no mérito. Alguns fazem pela questão da proporcionalidade salarial, outros acham que um evento cheio de mulheres atrairá mais homens. Há produtores que vão ainda mais fundo: dão open bar para mulheres na primeira hora. A To Morro Land acredita que a mulher deve ser respeitada como qualquer cliente. Barateando sua entrada, ela estaria sendo colocada como um produto. Ela deve frequentar o espaço onde mais se sentir à vontade, pagando mais barato ou o mesmo que os homens. Há mulheres que não se importam em pagar menos e isso deve ser respeitado. Cada uma tem suas razões para frequentar o evento A ou B, e isso não deve ser julgado.

A produtora de eventos Paloma de La Pena apresenta outro argumento para justificar os preços mais elevados pagos pelos homens.

– Não acho que seja uma prática claramente machista. Concordo com as festas que cobram ingresso unissex, acho bacana a iniciativa, mas a diferenciação é algo comum no mercado. É quase uma regulamentação da quantidade de homens e mulheres dentro de uma festa. Passa pela questão da segurança: homens juntos bêbados costumam causar mais confusão do que mulheres juntas bêbadas. Essa é uma estatística que eu pude comprovar nos cinco anos em que trabalhei nesse mercado.

Passa também pela questão da segurança: homens juntos bêbados costumam causar mais confusão do que mulheres juntas bêbadas. Essa é uma estatística que eu pude comprovar nos cinco anos em que trabalhei nesse mercado

A demanda por direitos iguais entre homens e mulheres é a bandeira principal do movimento feminista. Dentro da militância, no entanto, não há um entendimento comum sobre que tipo de atitude tomar em relação à questão.

Baile do Dennis, onde as mulheres também não pagam o preço cheio. Foto de divulgação
Baile do Dennis, onde as mulheres também não pagam o preço cheio. Foto de divulgação

– É difícil falar em consenso em um movimento tão plural quanto o feminista. São diversas correntes, com várias diferenças entre si. Acho que a questão das boates passa por isso. Algumas mulheres feministas vão evitar locais que façam diferenciação de preço por gênero, outras não vão ligar. Acho que o que há em comum é o desejo e a luta de poder ir a qualquer festa sem ser assediada, desrespeitada e tocada sem consentimento. Acredito que a luta por essa mudança cultural mais ampla deve continuar a ser feita, para que o fim da diferenciação de preço por gêneros seja consequência de ambientes sociais mais plurais e igualitários”, diz Tatiane Leal, doutoranda e mestra emcomunicação pela UFRJ. “Creio que muitas mulheres que se consideram feministas vão evitar as boates que fazem a distinção não especificamente pelo preço, mas principalmente pelo ambiente machista, em que culturalmente o assédio (verbal e físico) é visto como normal, em que os homens pagaram caro para estar ali e ter uma variedade de mulheres bonitas à disposição. A prática de presença VIP em algumas boates reforça essa ideia, que não está escrita, mas é sentida pelos frequentadores. Uma vez, uma amiga que não faz parte de nenhum grupo feminista me relatou ter ficado impressionada ao ir a uma festa alternativa (que não fazia diferenciação de pagamento por gênero) porque pôde dançar a noite inteira sem ser incomodada pelos homens”, conta.

Creio que muitas mulheres que se consideram feministas vão evitar as boates que fazem a distinção não especificamente pelo preço, mas principalmente pelo ambiente machista, em que culturalmente o assédio (verbal e físico) é visto como normal, em que os homens pagaram caro para estar ali e ter uma variedade de mulheres bonitas à disposição

Carla Rodrigues, doutora em filosofia pela UFRJ, ratifica o direito da mulher de poder escolher frequentar ou não esses espaços.

– É importante lembrar que os movimentos feministas são plurais, diversificados, não hierárquicos, e, sobretudo, não impõem a adesão por parte de nenhuma mulher. É por isso que, embora os movimentos feministas estejam em alta, comportamentos machistas se repetem, porque os feminismos partem de um princípio de liberdade que não seria coerente com qualquer tipo de medida coercitiva contra mulheres que estejam dispostas e interessadas em “se beneficiar” destes preços mais baratos em eventos que as tomam como produto. Não acho que dê para dizer o que alguém “deveria” fazer sem assumir um cunho moralista. Acho apenas que mulheres que não se identificam como objetos de consumo podem querer tomar providências para não serem confundidas com esse lugar tão estereotipado onde nós somos postas.

Para a feminista Laura Molinari, coordenadora de ativismo da ONG Meu Rio, ainda falta informação às mulheres sobre o assunto.

– A estratégia funciona porque apesar de o feminismo ter chegado a mais meninas e mulheres, ainda não é amplamente aceito, discutido ou vivido pela maioria das pessoas. Não se questiona o motivo por trás dessa diferença e, mesmo que exista esse questionamento, há uma distância entre não achar muito legal isso e deixar de frequentar. Como não é uma agressão ou algo mais grave, as pessoas relevam. Certamente não há consenso. Entre as feministas, pelo menos nos espaços em que circulo, há o entendimento de que esses eventos não devem ser frequentados. No movimento feminista, não conheço mulheres que concordem com essa lógica de preços diferenciados – que é, inclusive, ilegal para muitos juristas, já que não respeita o princípio da isonomia entre as pessoas. Em algumas cidades, tipo Bauru, em São Paulo, o Procon autuou estabelecimentos que cobravam preços diferenciados.

Gabriel Cassar

Gabriel Cassar é formado em jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ e autor do livro "Ressaca do adeus e outras crônicas", lançado pela Editora Chiado, em 2017. Já trabalhou nas áreas de publicidade e propaganda, assessoria de imprensa e redação. Atualmente, é dono da página "Gabriel Cassar - Crônicas, Contos e Poesias" e colaborador fixo do blog "Jornalismo de Boteco".

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