Morte ao Ginga: por quê?

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Nunca uma tecnologia brasileira foi tão incensada pelos técnicos e pela academia e tão renegada pela indústria de televisores

Por Cristina De Luca | ArtigoODS 12 • Publicada em 12 de setembro de 2016 - 09:01 • Atualizada em 12 de setembro de 2016 - 13:41

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Você conhece o Ginga? Pois saiba que se você tem uma televisão comprada há menos de dois anos, há uma grande chance de que ele esteja na sua casa.  Se você assina uma TV a cabo, no entanto, as chances de conhecê-lo são mínimas.  Ele está no conversor digital embutido na sua TV para captar o sinal da TV aberta. É o Ginga que torna possível o uso de aplicações interativas na TV aberta. Aplicações recebidas pelo ar, que prescindem  de uma conexão internet ativa. A menos que seja preciso enviar alguma informação de volta para a emissora.

Você nunca usou o Ginga e provavelmente não usará. Não porque não seja bom. Mas porque, na opinião dos fabricantes de TV e das operadoras de telefonia, ele não serve para nada…  Bom, para o negócio delas, não serve mesmo.  Elas querem uma interatividade baseada na internet, fazendo uso das aplicações de Smart TV e da banda larga.  E a interatividade proporcionada pelo Ginga é capaz de enviar grandes quantidades de dados pelo ar e usar outros meios, como conexões 2G/3G, SMS, WhatsApp, para receber a resposta da interação, quando necessário.

Para que o sinal analógico possa ser desligado, o governo Federal definiu que mais de 93% dos brasileiros devem estar aptos a captar o sinal digital. Daí a necessidade de distribuir os conversores para as camadas mais pobres, já que muitos deles ainda usam TV de tubo

Talvez esse tipo de interatividade não seja para você, que tem acesso à banda larga, fixa ou móvel. Mas pode ser um aliado para o governo reduzir a exclusão digital e levar os serviços de governo eletrônico a um grande número de brasileiros em locais onde a TV paga e banda larga não chegam. Pensando nisso, em 2012 o governo tomou a decisão de tornar o Ginga obrigatório em todos os televisores vendidos no país. E agora, obrigatório também nos mais de 12,8 milhões de conversores que serão distribuídos gratuitamente para brasileiros inscritos no Cadastro Único de Programas do governo Federal, incluindo o Bolsa Família. Conversores esses pagos pela operadoras de telefonia, para que essas pessoas não fiquem sem ver TV quando o sinal analógico for desligado e só o sinal digital estiver disponível.

Para que o sinal analógico possa ser desligado, o governo Federal definiu que mais de 93% dos brasileiros devem estar aptos a captar o sinal digital. Daí a necessidade de distribuir os conversores para as camadas mais pobres, já que muitos deles ainda usam TV de tubo, em conversores embutidos. Além disso, a Pesquisa de Mídia Brasileira de 2015, da Secretária de Comunicação da Presidência da República, mostra que 78% da população brasileira que recebe menos de 1 salário mínimo não têm acesso à internet. Mas boa parte já tem um celular, tornando possível o uso da interatividade através de inciativa como as do Internet 0800.

O Ginga funciona como uma espécie de sistema operacional, onde aplicativos são instalados e utilizados nas TVs. Esses aplicativos podem vir pré-carregados nos conversores, ou disponibilizados pelas emissoras de TV. Igualzinho como acontece com as aplicações da Smart TV. Só que as do Ginga vêm pelo ar e são padronizadas, para uso em qualquer aparelho receptor. As da Smart TV são proprietárias. É preciso desenvolver uma aplicação para o sistema operacional de cada fabricante.

Patinho feio da TV digital

Até hoje, a interatividade possibilitada pelo Ginga é o patinho feito da TV digital. Os radiodifusores não conseguiram criar um modelo de negócio, nem resolver o problema da evasão de audiência com a troca ou sobreposição das telas (a com a programação em vídeo e a com a aplicação interativa). Quem melhor resolveu esse dilema foi a Globo. Hoje, transmissões esportivas, novelas e alguns programas de variedade, como o “Encontro com Fátima Bernardes” e o “Mais Você”, têm aplicações interativas, sobre as quais você provavelmente também nunca ouviu falar, porque não são divulgadas.

Jogado para escanteio por quem poderia tê-lo transformado em um padrão de mercado, o Ginga prosperou na área técnica.  Virou padrão internacional e começou a brilhar como middleware convergente para broadcast e broadband, e padrão IPTV da União Internacional de Telecomunicações. Tornou pesquisadores brasileiros referencia. Mas você não ficou sabendo disso.

Serviços de governo, como política de estado, podem e devem tirar proveito deste potencial para levar educação e informação aos cidadãos

Nem que, na opinião de muitos cientistas, pesquisadores e professores, mais do que uma tecnologia brasileira superior a tudo o que se conhece para o mesmo fim, no mundo, o Ginga deve fazer parte da investida brasileira por maior protagonismo internacional. O Ginga tem uma linguagem de marcação desenvolvida no Brasil para conteúdos multimídia (NCL, tipo HTML) e uma linguagem de programação brasileira para uso geral (Lua, desenvolvida na PUC Rio). Ambas de alta qualidade. Exemplo da capacidade brasileira na área de Tecnologia da Informação e Comunicação”, afirma o professor  José Antonio Meira da Rocha, do Centro de Educação Superior Norte-RS da Universidade Federal de Santa Maria.

Por isso, você não sabe que, como diz David Britto, diretor da Totvs, uma das três empresas brasileiras que investiu  no desenvolvimento do sistema, “TV Digital é a plataforma mais eficiente de distribuição de conteúdo e aplicativos que existe.” Milhões de pessoas podem ser simultaneamente beneficiadas por conteúdo gratuito a um custo extremamente baixo se comparado ao mundo IP. “Nada foi feito ainda para explorar este potencial. Ela pode integrar-se facilmente ao mundo IP criando experiências inovadoras”,  desabafa David em um post no Facebook. “Serviços de governo, como política de estado, podem e devem tirar proveito deste potencial para levar educação e informação aos cidadãos”.

Mas para isso, como os fabricantes de televisores preferem seus próprios sistemas de Smart TV ao Ginga, por que a Smart TV está em todo mundo, embora pouco usada até nos Estados Unidos, onde a banda larga é acessível a muitos  mais lares que no Brasil. Foi preciso que o governo obrigasse esses fabricantes a não mutilar o sistema brasileiro de TV digital tirando dele um dos seus tripés, a interatividade, via Ginga.

Lobby empresarial

Nesta segunda (12/09), em Brasília, tem reunião do grupo que pode transformar o Ginga em padrão para os conversores de baixa renda, o Gired. Uma das primeiras depois da publicação da portaria do ministro Gilberto Kassab que sacramentou a obrigatoriedade do Ginga nos conversores para baixa renda. Certamente, repercutirá nela a reportagem publicada sexta-feira, na Folha, na qual a associação que representa os fabricantes de TV, a Eletros, revela ter enviado um pedido ao Ministério da Ciência, tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) para retirar a obrigatoriedade do Ginga para os televisores que fabricam e vendem no país.

Os dois movimentos contrários à obrigatoriedade do Ginga, das operadoras e agora, da indústria, se apoiam no mesmo argumento: o sistema onera o custo de produção dos equipamentos. Segundo a Eletros, você paga até R$ 50 em cada televisor para a inclusão de um sistema que não usa.  Por que não usa?

Só agora, depois da decisão do ministro Kassab de incluir o Ginga nas caixinhas conversoras para 12 milhões de famílias, o desenvolvimento de aplicações interativa vai se tornar uma realidade viável

André Barbosa, que foi da Casa Civil na época da implantação da TV digital no Brasil, no governo Lula, e no governo Dilma coordenou o programa Brasil 4D, financiado pelo Banco Mundial, que comprovou a viabilidade do uso da interatividade na TV aberta em projetos sociais do governo, explica: “só agora, depois da decisão do ministro Kassab de incluir o Ginga nas caixinhas conversoras para 12 milhões de famílias, o desenvolvimento de aplicações interativa vai se tornar uma realidade viável”. A portaria de Kassab é de 26 de agosto. E o relatório do World BanK/Brasil 4D pode ser facilmente encontrado na Internet.

Além disso, um programa do MCTIC tem colocado milhões de reais, há anos, no treinamento de desenvolvedores e incentivo à criação de aplicações para a o Ginga, que caminha a passos largos hoje para se transformar em browser da próxima geração de TV Digital que permitirá a total convergência com a Internet (procure ler sobre o IBB). A substituição do uso do Java, no Ginga, pela HTML 5, em uma última tentativa dos desenvolvedores de software para baratear o sistema e escapar do pagamento de licenças para a Oracle, que hoje detém os direitos a um componente usado em muitos software concorrentes ao Ginga no mundo, voltou animar alguns radiodifusores a olharem novamente para o nosso sistema, com outros interesses.

Nas sexta-feira, perguntei ao presidente da Eletros, em uma entrevista por telefone, se os radiodifusores apoiavam o pleito da indústria. Ele me disse que não havia conversado com representantes das emissoras. Sabia apenas que a Globo estava interessada no Ginga, por outros motivos. Fuça daqui, fuça dali, descobri que a Globo trabalha no sentido de usar o Ginga para o Globo Play. “A  emissora descobriu que dá trabalho manter o Globo Play em diferentes plataformas”, me disse uma fonte, em off. Infelizmente, não consegui contato com Raymundo Barros, diretor geral de tecnologia da emissora, para confirmar a informação e pegar detalhes. Mas faço questão de dizer isso aqui, porque pessoas próximas ao assunto me garantiram que o interesse é real. E que a Globo de fato estuda essa possibilidade, que daria novo fôlego ao Ginga.

O Ginga é usado também no set-top  box da EnterPlay, plataforma brasileira que centraliza TV aberta e vídeo on demand. como o NetFlix.  A companhia é a primeira a desenvolver uma plataforma 100% brasileira apostando na concentração de TV digital, IPTV e conteúdo sob demanda.  Dá uma olhadinha lá na página deles para ver o tipo de serviço que oferecem. Em pequenas cidades chegam a ser concorrentes até mesmo da TV Paga.  Suas linhas de negócio OTT  pode receber a marca de parceiros, e a empresa pode atuar também como TV por Assinatura e ou IPTV,  TV Corporativa, Transmissões de Eventos ao Vivo, Video On Demand (VOD) para Hotéis e Hospitais. Em parte desses serviços, o Ginga é fundamental.  Entendeu agora onde o sistema pode chegar?

Logomarca do Ginga,ainda um desconhecido
Logomarca do Ginga,ainda um desconhecido

Antes de o professor Luiz Fernando Gomes Soares, da PUC-Rio, um dos pais do Ginga, falecer, tive uma longa conversa com ele por telefone. Nela, ele me contou que o Ginga é resultado de investimento público da ordem de R$ 60 milhões, envolvendo 1500 pesquisadores de todo o País, em diversas instituições de pesquisa, universidades e indústria. Atualmente, é adotado por 17 países da América Latina e da África.

Ele estava preocupado com o impasse sobre a fabricação dos conversores digitais no Gired, que acabou gerando atraso no cronograma de desligamento da TV analógica, adiado para começar em 2018 e terminar só em 2023. Até 2018, somente grandes cidades onde há mercado de TV digital e de banda larga haverá o desligamento – isso inclui todo o estado de São Paulo e todo o Rio de Janeiro, além de uma parte dos estados do Rio Grande do Sul e do Paraná.  Cidades menos povoadas também serão desligadas até 2018, mas a lista completa só será decidida após análise da expansão efetiva da TV digital.

Democratização da internet

Como nessas cidades, o interessante para a indústria de TV é vender o modelo de Smart TV, onde investiram muito dinheiro, tirar o Ginga pode ajudar a reduzir um pouquinho o valor dos aparelhos e, de quebra, frear uma ainda provável  concorrência na oferta de serviços VOD, já que o grande apelo para a interatividade aberta é a oferta de serviços para a população de baixa renda.

“Se não houver pressão dos produtores de conteúdo lançando aplicações interativas que demandem um ginga ágil e completo, e não houver incentivo do governo, continuaremos com uma interatividade pobre e o Ginga ameaçado”, me disse o professor Luiz Fernando Soares, que morreu vítima de um infarto em setembro de 2015.

Muitos acreditam que não é forçando a indústria a colocar software nacional nos eletrônicos que iremos nos desenvolver. Concordo. Mas não no caso do Ginga. O pensamento aqui é o análogo aos das operadoras que querem franquia da banda larga para os mais ricos e que usam mais não onerarem o preço para os mais pobres, que usam menos.

Ainda aguardo uma série de informações pedidas, por e-mail, ao presidente da Eletros, Lourival Kiçula. Entre elas, a composição de custo do Ginga. O tamanho do mercado de TVs do qual estamos falando. Quantos aparelhos já no mercado (vendidos e nas mãos do varejo) têm o Ginga embarcado. E no parque instalado, quantos aparelhos são de tubo e necessitam serem trocados ou receberem  conversores digitais.  Tudo isso pesa em uma análise sobre o pleito da indústria de retirada do Ginga dos aparelhos. Vale ressaltar que as líderes da indústria, Samsung e LG, têm suas próprias implementações do Ginga. Outros fabricantes licenciam o Ginga da EiTV!, da Totvs ou da Mopa, todas empresas brasileiras de software que acreditam no sistema e investiram nele, pensando na internacionalização do modelo brasileiro de TV Digital, que teve algum impulso no governo Lula e desacelerou no governo Dilma.

Muitos acreditam que não é forçando a indústria a colocar software nacional nos eletrônicos que iremos nos desenvolver. Concordo. Mas não no caso do Ginga. O pensamento aqui é o análogo aos das operadoras que querem franquia da banda larga para os mais ricos e que usam mais não onerarem o preço para os mais pobres, que usam menos. No caso do Ginga, a obrigação padroniza o uso, para  dar aos mais pobres a chance de usarem aplicativos de governo eletrônico, capacitação profissional, serviços de saúde, movimentação bancária, etc.  Ninguém reclama de ter aplicativo nacional nos smartphones fabricados no Brasil como contrapartida à isenção de impostos para baratear o preço e chegar à população de baixa de renda, embora boa parte desses aplicativos jamais seja usada por quem comprou os smartphones com isenção de impostos.  Qual contrapartida a indústria gostaria de ter para o Ginga? Não seria um caminho viável, em vez de pedir o fim da obrigatoriedade de uso do sistema?

O que está em jogo é a possibilidade, real, de ter o Ginga como ferramenta de apoio para a inclusão digital.  E mais uma chance de ter as emissoras produzindo algo interessante em relação à convergência broadband/broadcast proporcionada pela interatividade controlada por ela, emissora, e não pelos fabricantes de TV ou de celulares e operadoras de telefonia.

A questão é econômica sim. Mas não diz respeito, única e exclusivamente, ao custo dos aparelhos.  Há mais variáveis sobre a mesa.

Cristina De Luca

É jornalista com Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro. Hoje trabalha como editor at large e colunista do Grupo Digital Newtwork! e é comentarista de TI da Rádio CBN.

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Um comentário em “Morte ao Ginga: por quê?

  1. Willian disse:

    Descanse em paz, Ginga!
    Pouca documentação, e a documentação existente falava mais da teoria, das camadas do middleware….. sem uma IDE, sem exemplos, o Ginga-NCL já nasceu fadado ao fracasso. Até mesmo o site oficial do projeto está abandonado. Isso sem contar que só programador que já trabalha na tv vai se interessar em aprender. Já que não posso criar um conteudo em ginga e vê-lo rodando direto na minha tv…..como a gente faz com o celular: cria um app…transfere pro aparelhoe pronto.

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