Trem olímpico rumo à realidade

Trens novos melhoraram a rede da Supervia, mas o desrespeito permanece

Num vagão da Supervia em direção a Deodoro, incidente expõe descaso com passageiros

Por Valquiria Daher | Mobilidade UrbanaODS 11ODS 16 • Publicada em 18 de agosto de 2016 - 08:00 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 22:56

Trens novos melhoraram a rede da Supervia, mas o desrespeito permanece
Depois de muita insistência dos passageiros, homem desmaiado recebe assistência no trem
Depois de muita insistência dos passageiros, homem desmaiado recebe assistência no trem

Alienígenas têm invadido os trens durante os Jogos Olímpicos. São turistas e moradores da Zona Sul que passaram a usar o transporte para chegar ao Estádio Olímpico ou ao Complexo de Deodoro. Eles se juntam às 700 mil pessoas que circulam em dias úteis nos carros superlotados a caminho do trabalho ou na volta para casa. Fui um desses passageiros olímpicos, na semana passada, rumo a uma partida de rugby em Deodoro. Embarquei por volta das 15h, num trem do ramal Santa Cruz. Viajei de pé, mas o tempo passou rápido porque engatei uma conversa boa com duas irmãs – costumeiras usuárias de trem – e o filho de uma delas, uma figurinha de uns 8 anos, que queria encontrar algum americano no vagão para gastar o seu inglês. No banco ao lado, um flamenguista tirava uma soneca gostosa, de ressonar. Nem ligava pra voz empostada dos ambulantes: ‘Olha, a bala Juquinha a um real’, ‘Aqui tem capa de chuva’, ‘Tá com fome? Tem biscoito’.
De repente, algo estranho perturbou aquela cena tão cotidiana:

Quando passamos a achar OK receber um tratamento desumano? Não pode ser normal tratar uma pessoa desmaiada – mesmo que seja por bebida – como um saco de lixo, que pode ficar jogado num trem em movimento. Não podemos encarar como corriqueiro uma empresa como a Supervia submeter os passageiros a conviver com uma situação como essa, num trem lotado com um cheiro insuportável. Não importa se quem estava no trem ia para um evento olímpico ou era usuário do dia a dia.

“Que cheiro é esse?”, “Que nojo…”, “Que merda”. Um aroma insuportável tomou conta do vagão, tirando o bom humor do nosso jovem estudante de inglês e acordando até o dorminhoco rubro-negro.

Nem um minuto depois, um homem cai estatelado no chão do trem, bem do nosso lado. Todo cagado – com perdão da palavra -, inerte, com os pés descalços. Estávamos na estação Madureira, e, imediatamente, os passageiros começaram a gritar pelos funcionários da Supervia na plataforma, pedindo ajuda. “Tem um homem desmaiado aqui”, “Ajuda , o cara tá passando mal”…

Com seu colete verde-limão, o funcionário entrou no vagão, deu uma rápida olhada e avisou. “Não dá pra fazer nada aqui, deixa ele aí até Deodoro, lá eles podem atender, ele deve estar bêbado”.
A revolta foi generalizada. Como seguir viagem com aquele cheiro insuportável no ar? Como seguir viagem num vagão superlotado, com um corpo estendido no chão, ocupando grande parte do espaço? Como seguir viagem sem prestar atendimento médico a uma pessoa que desmaiou e se sujou toda daquela forma?

Para impedir que o trem partisse os passageiros usaram a força e impediram o fechamento das portas com o corpo. O clima esquentou, todos gritavam para o funcionário que não dava pra continuar daquele jeito. Uns 15 minutos depois – que pareceram uma eternidade – chega uma funcionária – possivelmente uma bombeira – que examina o homem desmaiado, tenta inutilmente acordá-lo e vaticina: “Está alcoolizado, não temos como tirá-lo daqui”. O outro funcionário insiste: “Ele segue pra Deodoro, não temos como retirá-lo”.

Mais proativo do que os representantes da Supervia, um passageiro se oferece pra ajudar a carregar. Outros se juntam. O homem é retirado. Quase meia hora depois de parado, o trem segue viagem, mais lotado do que nunca porque uma multidão foi entrando durante o incidente. No meio do vagão, a enorme marca de fezes no chão. No ar, o cheiro insuportável. Gozadores, os passageiros dizem aos que acabaram de entrar. “Olha, tem lugar lá no meio…”, bem do lado de onde o homem desmaiou…

O menino pergunta: “Como a gente diz merda em inglês”, e a mãe e a tia reagem: ‘Não fala palavrão!”. O flamenguista lamenta, tampando o nariz: “Logo no único dia que eu consegui vir sentado…”

Saltei pouco depois em Magalhães Bastos para entrar no mundo organizado e seguro da Rio 2016. Quando contei essa história para algumas pessoas, ouvi: “Trem é assim mesmo, você não está acostumada”, “Isso não é novidade”, “Essa é a realidade”, “Isso não podia acontecer num transporte das olimpíadas”.

E eu me pergunto quando passamos a achar OK receber um tratamento desumano? Não pode ser normal tratar uma pessoa desmaiada – mesmo que seja por bebida – como um saco de lixo, que pode ficar jogado num trem em movimento. Não podemos encarar como corriqueiro uma empresa como a Supervia submeter os passageiros a conviver com uma situação como essa, num trem lotado com um cheiro insuportável. Não importa se quem estava no trem ia para um evento olímpico ou era usuário do dia a dia.

Procurada para explicar o incidente e falar da atual situação da rede ferroviária, a Supervia não respondeu até ontem à noite.

Trens novos melhoraram a rede da Supervia, mas o desrespeito permanece
Trens novos melhoraram a rede da Supervia, mas o desrespeito permanece

O mundo maravilhoso dos trens europeus

Quem viaja ao exterior costuma voltar maravilhado com o transporte ferroviário. Fomos então procurar o engenheiro de transportes da Coppe Hostilio Ratton Neto para perguntar porque, para nós, trens lá fora são exemplo de civilização e desenvolvimento, mas aqui justamente o oposto. “Não é só no Rio, no Brasil todo é visto dessa forma”, ressalta ele, destacando que não pode falar da rede da Supervia especificamente, pois desconhece os investimentos e projetos. “O que determina a qualidade do transporte é a sua condição de acompanhar a evolução da população que precisa se deslocar. Precisa ser sustentável ao longo do tempo. Aqui houve uma intensa urbanização, um aumento rápido de demanda, sem investimento”, relembra o professor.

Ele lembra que, com a mudança do marco regulatório nos anos 1990, entrou em cena o setor privado. “As concessionárias não tinham, inicialmente, a obrigação de fazer investimentos, mas foram modificados os contratos originais e o tempo de concessão foi aumentado mediante uma contrapartida de investimentos”. A Supervia teria a concessão até 2023 e ganhou mais 25 anos. “O contrato termina em 2048, não estarei vivo para ver”, comenta o professor.

Penso que o trem seja o único meio de transporte urbano que carrega em si um estigma difícil de eliminar. E fácil perceber isso ao verificar o lugar que a Central do Brasil ocupa no imaginário social da população carioca – como lugar de perigo, risco, sujeira e desordem. E essa validação se faz presente na forma como o Estado interage com essa população que utiliza esse meio de transporte

Atualmente os trens da Supervia atendem o Rio de Janeiro e mais 11 municípios, segundo o site da empresa, do consórcio Odebrecht Mobilidade. A malha tem 270 km, em cinco ramais e 102 estações. Dos 201 trens, 183 têm ar condicionado. Foram colocados em uso 120 novos trens, e há mais 20 em fábrica. Em 2016, o último dos novos cem trens chineses foi colocado em atividade – eles estão servindo de transporte olímpico. Em 2015 foram transportadas 178 milhões de pessoas.

Os investimentos feitos a partir de 1998 devolveram ao trem um papel importante na mobilidade do Rio. Antes dessa fase, o número de passageiros chegou a cair para 50 mil por dia, tal a situação da rede ferroviária. Hoje, segundo o site da Supervia, são 700 mil passageiros em dias úteis.

Houve avanço, mas o que ainda emperra a nossa rede? Para Hostílio o problema é mais complexo. “Há uma distorção completa no Brasil. Aqui se admitem taxas altas de passageiros por metro quadrado. Quando eu trabalhava na CBTU se falava em 12 pessoas por metro quadrado. Algumas referências falam de 4 a 7 passageiros neste espaço. Isso até pode ser admitido, mas apenas durante pouco tempo. Aqui as viagens são muito longas e essa situação é inaceitável”, explica. “Temos um padrão de viagens que é pendular. São deslocamentos de grande e média distância, o que faz com que os trens fiquem lotados muito tempo. Não há o entra e sai de sistemas de metrô, que estão em áreas mais restritas, com muitas trocas de passageiros nas estações. Isso se repete aqui tanto no trem quanto no metrô”.

Mas qual seria a solução? Hostílio explica que os veículos precisavam ser planejados para ter mais gente sentada do que em pé, mas, por outro lado, isso encareceria muito a passagem ou precisaria de subsídio do governo. Outra solução – ainda mais distante – seria o planejamento de território, com mais trabalho e lazer próximos às moradias de grande parte da população.

O antropólogo Felipe Magalhães Lins, pesquisador do Instituto Pereira Passos, lembra que o processo de sucateamento dos trens é notório, mas foi parcialmente resolvido com a troca da frota para os megaeventos ocorridos na cidade, ainda que persistam reclamações sobre as péssimas condições físicas de algumas plataformas, falta de acessibilidade e segurança no entorno de estações.
“Penso que o trem seja o único meio de transporte urbano que carrega em si um estigma difícil de eliminar. E fácil perceber isso ao verificar o lugar que a Central do Brasil ocupa no imaginário social da população carioca – como lugar de perigo, risco, sujeira e desordem. E essa validação se faz presente na forma como o Estado interage com essa população que utiliza esse meio de transporte, sendo em sua grande maioria pobre e moradora de regiões periféricas do Centro urbano”, avalia Magalhães.
Mesmo os governos tendem a olhar menos para o trem e para seus usuários. O antropólogo destaca que, entre 2010 e 2020, os trens do Rio receberão R$ 1,2 bilhão de investimentos públicos, enquanto a recém-inaugurada linha 4 do metrô, que liga a Zona Sul à Barra da Tijuca, receberá R$ 8,5 bilhões do Governo do Estado, segundo o relatório AgendaRio 2017 publicado recentemente pela Casa Fluminense.
“O metrô durante muito tempo foi compreendido como uma versão melhorada dos trens – um meio de transporte seguro, eficiente, moderno e que transita por regiões mais valorizadas da cidade. Assim, pode se dizer que os trens são compreendidos por aqueles que o utilizam como o lugar do ilegalismo urbano”, analisa Magalhães.

Valquiria Daher

Formada em Jornalismo pela UFF, nasceu em São Paulo, mas cresceu na cidade do Rio de Janeiro. Foi repórter do jornal “O Dia”, ocupou várias funções no “Jornal do Brasil” e foi secretária de redação da revista de divulgação científica “Ciência Hoje”, da SBPC. Passou os últimos anos no jornal “O Globo”, onde se dedicou ao tema da Educação. Editou a Revista “Megazine”, voltada para o público jovem, e a “Revista da TV”. Hoje é Editora do Projeto #Colabora e responsável pela Agência #Colabora Marcas.

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

2 comentários “Trem olímpico rumo à realidade

  1. Mitu Gouveia disse:

    Não estava no trem…..fiz esta semana essa viagem três vezes…..absolutamente civilizada….aliás surpreendente pelo número exagerado de passageiros e tudo na maior ordem. Parece um acidente…um acidente não se deve tocar na pessoa até chegar socorro competente e responsável….enfim um pouco desagradável certamente o cheiro no ar….mas por insistência o passageiro foi retirado, com risco para ele, e o cheiro ficou……

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *