Pelo direito de tomar um vinho em paz

Fim de tarde no Boulevard Saint Michel, um dos prazeres ameaçados pela onda de terror

Cenas de islamofobia, racismo e intolerância parecem remake de um filme conhecido

Por Helena Celestino | ODS 11ODS 15Vida Sustentável • Publicada em 22 de novembro de 2015 - 09:20 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:54

Fim de tarde no Boulevard Saint Michel, um dos prazeres ameaçados pela onda de terror
Fim de tarde no Boulevard Saint Michel: preservação de valores e direitos é um dos grandes desafios da luta contra o terror
Fim de tarde no Boulevard Saint Michel: preservação de valores e direitos é um dos grandes desafios da luta contra o terror

Uma Guantánamo à la francesa foi a proposta lançada pelo  secretário  do Partido Republicano, o mesmo do ex-presidente da França Nicholas Sarkozy: ele  defende a construção de um campo de detenção para segregar as 4 mil pessoas vigiadas pelos  serviços de inteligência como “possíveis candidatos a terrorista”. A presidente do Front Nacional,  Marine Le Pen, quer  a suspensão imediata da concessão de asilo e a expulsão dos imigrantes. para limpar os subúrbios –  no léxico do partido de extrema direita, estrangeiros, muçulmanos e criminosos são a mesma coisa.  Os republicanos além-mar, também deram sua contribuição ao discurso do ódio: o candidato à próxima  eleição americana, Donald Trump, causou escândalo ao anunciar  que exigiria  um registro de todos os muçulmanos no pais – uma cópia da exigência  feita aos judeus pelos nazistas –  e foi obrigado a voltar atrás. Mas os deputados americanos  aprovaram projeto tornando  praticamente impossível a chegada de refugiados sírios e iraquianos aos Estados Unidos, embora só europeus estejam entre os suspeitos do ataque à França.

Alguém já viu um filme igualzinho a esse? No roteiro do passado, cenas de islamofobia, racismo e intolerância chegaram junto com  guerras, muita destruição, morte e medidas extremas, incapazes de impedir novos e bárbaros atentados ao redor do mundo. Não teve final feliz, não vale a pena ver de novo, mas um remake já anda se anunciando. No dia seguinte ao assassinato de 130 pessoas em oito atentados em Paris, o presidente declarou guerra ao terror e perseguição implacável aos inimigos jihadistas. Não é ficção, sabemos, é vida real e o comandante em chefe da vez é o presidente da França, François Hollande, ainda pouco habituado ao tom marcial assumido na última semana para responder ao dramático assassinato da geração Bataclan, símbolo da alegria de viver atacada pelos cultuadores da morte e do ódio.

Nesta luta contra o terror, há duas coisas que o ocidente tem a defender: a vida dos cidadãos e os seus valores de respeito à lei, à tolerância e às liberdades civis

As palavras  do socialista francês são exatamente as mesmas  transformadas em mantra da política americana  pelo presidente  George W. Bush nos seus dois mandatos na Casa Branca. Passaram-se 14 anos entre a derrubada das torres gêmeas no coração de Manhattan e os atentados no triângulo boêmio de Paris, deixando duas cidades feridas por seu gosto pela vida e pela liberdade. Sob bombas da França, Rússia e Estados Unidos despejadas no califado da Síria e Iraque e caçados por um impressionante aparato policial em três países europeus,  ainda assim o Estado Islâmico sentiu-se fortalecido para ameaçar os Estados Unidos, depois de derrubar um avião russo de passageiros e semear morte no Líbano.  Com um discurso apocalíptico e brutal, os jihadistas já tinham provado sua capacidade de conquistar jovens ocidentais de mal com a vida, agora demonstraram habilidade para se adaptar e se infiltrar nas comunidades ocidentais.  Provocaram a rara  união da Rússia com as  potências ocidentais e os poderes locais contra o terror, mas consideram-se vitoriosos e esperam conquistar novos militantes para o front.

“Trata-se de uma organização armada que dispõe de uma base territorial. O risco de a França declarar guerra é se imaginar que pode haver uma igualdade entre o Estado Islâmico e o Estado francês. É uma espécie de reconhecimento do inimigo”, comenta o filosofo  e escritor Frederico Gros, professor de Sciences Po, no passado também consultor do presidente da União Soviética, Mikhail Gorbatchev.

Para o professor, os conceitos de guerra e paz são obsoletos para tratar do mundo contemporâneo.  O terrorismo  criou  “estados de violência” ou  “guerras difusas” , inassimiláveis ao modelo clássico de guerra na qual  dois estados se enfrentam, com base em estratégias miliatres. É um inimigo que criou novas regras e contra o qual existem duas reações clássicas: aumentar as medidas de segurança e investir na prevenção ou, seja,  na educação.

“A curto prazo, a única solução é aumentar a segurança,  mas isto coloca um problema porque dá poder demais ao estado e pressupõe que os cidadãos estejam vigilantes.  É a única solução de curto termo, mas não pode  virar algo de longo prazo”.

Quase todos concordam: é preciso acabar com o Estado Islâmico, mas como? Nesta luta contra o terror, há duas coisas que o ocidente tem a defender: a vida dos cidadãos e os seus valores de respeito à lei,  à tolerância e às liberdades civis.

Ainda de luto, traumatizados e com medo de novos ataques, é exatamente esta a discussão que começa lentamente a ser travada em Paris : o equilíbrio entre as medidas contra o terrorismo, liberdade e direitos humanos, numa repetição  do debate que dividiu  os americanos pós-atentados e pavimentou a eleição de Barack Obama.

Poucos não concordam: a guerra dos Estados Unidos contra  o terror foi um fracasso. Até acabar com os líderes da Al Quaeda, os Estados Unidos levaram quase uma década – de 2001 a 2009 – iniciaram duas guerras – com a morte de milhares de americanos e centenas de milhares de civis –  gastaram muitos bilhões de dólares, tiveram a imagem destruída por conta das muitas violações dos princípios democráticos, da tortura à espionagem em massa, prisões secretas, drones. Foram só perdas: assim que  sairam do Iraque,  a Al Quaeda renasceu das cinzas e ainda originou o Estado Islâmico, numa  reencarnação muito mais feroz do que o grupo outrora comandado por Bin Laden.

“Haverá certas restrições temporárias de liberdade, a segurança é a primeira das liberdades,” anunciou o primeiro-ministro Manuel Valls, logo depois de aprovar a prorrogação do estado de emergência por três meses, com apenas seis abstenções.

Nenhuma dúvida, as imagens das ruas patrulhadas com soldados empunhando armamento pesado mostram que a prioridade máxima é a segurança.  Em menos de uma semana, as autoridades realizaram 414 operações policiais, prenderam 64 e botaram 184 em prisão domiciliar, o que mesmo para padrões americanos pós atentado criaria escândalo – diz o New York Times.  Pressionados pela crescente popularidade da direita e da extrema-direita, o governo socialista  não se intimidou em defender um pacote de leis duríssimas, autorizando a prisão sem mandato judicial, o fechamento de mesquitas, a retirada de blogs com glorificação do terrorismo e suspeitos colocados por tempo maior em prisão domiciliar.  Hollande quer mais, pretende incorporar à constituição a expulsão de estrangeiros  e a retirada da nacionalidade dos terroristas, uma versão francesa do Ato Patriota que suspendeu liberdades democráticas e autorizou a espionagem em massa logo depois do 11 de setembro. “Seremos mais prudentes”, acredita Gros.

Será? No início da semana, o diretor da CIA lembrou a pressão dos europeus contra a escuta de telefones de políticos, empresários e cidadãos, botando em dúvida a capacidade de a Europa seguir o rastro dos terroristas e combater o Estado Islâmico. Por todos os lados, surgiram propostas de uma CIA europeia, assim como foi  suspensa – temporariamente? – a  livre circulação de pessoas na União Europeia, instituição com raízes fincadas no sonho de uma paz permanente. A defesa da Europa  exigirá a rejeição aos refugiados de guerras criadas pelas grandes potências? Já fomos todos Charlie, somos todos parisienses mas continuamos defendendo a tolerância, a liberdade, a solidariedade e o  sagrado direito de ir tomar um vinho no terraço do café.

 

Helena Celestino

Jornalismo é um vício assumido, é difícil me imaginar longe da notícia. Acostumei a viver com o dedo na tomada: aprendi isto trabalhando, viajando pelo mundo e sendo por muitos anos editora executiva do Globo.

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