Evangélicas com fé no samba

Atriz e evangélica, Renata Santos já desfilou de biquíno e , este ano, vai interpretar um orixá na Mangueira

Mulheres enfrentam sentimentos de culpa e críticas nas igrejas que frequentam por se entregarem à paixão pelo Carnaval

Por Patrícia Paladino | ODS 11 • Publicada em 26 de fevereiro de 2017 - 17:02 • Atualizada em 27 de fevereiro de 2017 - 00:02

Atriz e evangélica, Renata Santos já desfilou de biquíno e , este ano, vai interpretar um orixá na Mangueira
Adepta do sincretismo,  atriz Renata Santos é espírita, frequenta cultos evangélicos e vai sair de orixá na Mangueira. Foto de Daniel Pinheiro/Divulgação

É só os tamborins começarem a esquentar para a polêmica adentrar a avenida: afinal, quem é de Deus pode se render ao baticum? Não há consenso nem dentro de uma mesma igreja. Bispo licenciado da Igreja Universal, o prefeito Marcelo Crivella ameaçou viajar no Carnaval e ontem (24 de fevereiro) não apareceu na Marquês de Sapucaí para a tradicional entrega da chave da cidade ao Rei Momo. Já Tuane Rocha, 34 anos, também evangélica , vai desfilar como destaque não apenas em uma, mas em duas escolas de samba: na Acadêmicos da Rocinha, da Série A, e na São Clemente, do Grupo Especial. “Não vejo como a religião e o trabalho de uma pessoa podem ser incompatíveis. Minha fé é com Deus, eu oro ajoelhada, pedindo que continue sendo uma pessoa correta e boa, que ele me dê discernimento e me oriente. E considero a Sapucaí um grande palco, onde represento personagens diferentes”, afirma Tuane, que se converteu há cinco anos.

Não conversei com meu pastor, portanto ele não autorizou ou desautorizou; e não vou desfilar nua. Vou reproduzir um destaque do Carnaval de 1991 da Imperatriz Leopoldinense, que desfilou de tapa sexo e seios de fora, mas eu venho com uma calcinha toda bordada com pedras, colares sobre os seios, pulseiras e um grande aplique que esconde parte do bumbum

A paixão pela festa de Momo é mais antiga que a opção pela religião. Formada em artes cênicas, ela trabalha com Carnaval há 18 anos, viajando pelo mundo como passista em uma companhia de samba. Há poucos dias, se viu em meio a um turbilhão provocado por uma reportagem dizendo que ela iria desfilar nua em um carro alegórico da Rocinha, com a autorização do pastor de sua igreja. “Não é verdade. Não conversei com meu pastor, portanto ele não autorizou ou desautorizou; e não vou desfilar nua. Vou reproduzir um destaque do Carnaval de 1991 da Imperatriz Leopoldinense, que desfilou de tapa sexo e seios de fora, mas eu venho com uma calcinha toda bordada com pedras, colares sobre os seios, pulseiras e um grande aplique que esconde parte do bumbum”, conta. Fato é que, depois da reportagem, ela passou a ser alvo de olhares de repúdio na igreja que frequenta e recebeu pesadas críticas nas redes sociais, inclusive de pastores, que tornaram público seu desagrado. De uma coisa Tuane tem certeza: não vai parar de desfilar por causa disso. Muito menos deixar de ser evangélica.

Tuane Rocha e Renata Santos: unidas pela fé e a paixão pelo Carnaval

Musa do Carnaval carioca, a atriz Renata Santos, 36 anos, faz coro. Ela sairá este ano na Mangueira, representando um orixá no enredo “Só com a ajuda do santo”. Para quem também frequenta uma igreja evangélica, pode parecer um descompasso. “O importante é ter respeito por todas as religiões. Se fosse assim, uma atriz evangélica não poderia interpretar uma personagem espírita, por exemplo. É uma caracterização feita com respeito pela minha religião e pela da personagem que vou representar. Não vejo como isso pode ir contra princípios religiosos, sejam eles católicos, das religiões africanas ou dos evangélicos.”

Adepta do sincretismo, Renata foi criada na fé evangélica, fez primeira comunhão no catolicismo e, hoje, frequenta o centro espírita Frei Luís. Mas, eventualmente, ainda participa de cultos. “Desfilo há 18 anos e nunca tive problemas com nenhum dos pastores ou líderes das religiões por onde passei”, conta Renata. “Quando era evangélica, minha pastora sabia que eu desfilava e sempre me desejou boa sorte. Nunca houve uma palavra me reprimindo”, diz a musa, que é casada e desfila sempre com o marido por perto.

Tenho muito medo que alguém saiba, no fundo porque sinto culpa por isso. Mas não faço nada de errado, afinal de contas. Só amo Carnaval, o samba-enredo, a batida da bateria, isso me emociona. É uma energia que também sinto na igreja

Nem todas contam com tanta compreensão por parte de seus pares na igreja que frequentam. A publicitária Maria (nome fictício), 39 anos, também é casada, evangélica e apaixonada por Carnaval. Mas, ao contrário das musas famosas, ela desfila anônima – e tem que se manter assim. Há 12 anos, o enredo se repete: ela  espera ansiosa fevereiro chegar, ao mesmo tempo em que se penitencia por isso. “Cresci na religião evangélica e lá nos ensinam que esta é uma época de resguardo, de oração, de evangelização. Mas basta chegar mais perto e eu sucumbo”, conta. Ela desfila escondida, literalmente. Misturada na massa das alas, sempre escolhe fantasias com muita maquiagem ou máscara, para não ser r econhecida pelos membros de sua igreja.

Apenas parentes próximos sabem da paixão pela  folia. E Maria tem pavor que mais alguém descubra. Ao dar depoimento para esta matéria, pediu que nem a escola pela qual desfila fosse identificada. “Tenho muito medo que alguém saiba, no fundo porque sinto culpa por isso. Mas não faço nada de errado, afinal de contas. Só amo Carnaval, o samba-enredo, a batida da bateria, isso me emociona. É uma energia que também sinto na igreja. Ai, acho que agora cometi outro pecado!”, diz, rindo.

Para Tuane, Renata e Maria mais do que se render aos dogmas, o importante é o contato com Deus. “Minha conversa é com Ele. Antes de entrar oro para que eu faça um bom desfile, que a escola brilhe. Se Deus me abençoa, por que os homens que o representam não podem fazer o mesmo? Eu estou interpretando, respeitando a minha religião e a do meu personagem. Que mal há nisso?”, questiona Renata Santos. “Por causa do meu trabalho no Carnaval, fiz faculdade de Artes Cênicas, minha filha está se formando em Publicidade aos 21 anos, tenho minha casa. Ao frequentar a Igreja Evangélica, encontrei paz e equilíbrio mental. Eu devo ao Carnaval e a Deus o que tenho e o que sou. E não vou abrir mão de nenhum dos dois”, finaliza Tuane.

No país do sincretismo e da liberdade de credo, a Marquês de Sapucaí vem mais unindo do que dividindo. Como um samba que não atravessa, hoje há um padre que desfila pelo Salgueiro, a passarela passa por uma “lavagem”, para atrair boas energias, pautada pelos rituais das religiões africanas, e até mesmo o Cardeal Arcebispo do Rio, Dom Orani Tempesta, abençoa as agremiações na Cidade do Samba. Está na hora de mais gente ungida mostrar seu valor.

 

Patrícia Paladino

Jornalista, trabalhou por 12 anos no Jornal do Brasil, sempre em editorias de cultura e comportamento. Saiu da redação para aventurar-se por outros campos da comunicação: atua como freelancer em jornalismo; realiza diagnóstico e elabora planejamento de comunicação integrada para empresas e marcas; cria a arquitetura e produção de conteúdo para sites e faz gerenciamento de mídias sociais.

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