Uma avenida chamada Paulista

Pai e filha passeiam pela tradicional, e agora liberada, pelo menos aos domingos, Avenida Paulista

Das manifestações políticas aos domingos de lazer, tradicional via de São Paulo ganha ares de praça e passa a ser ocupada pela população

Por Florência Costa | Artigo • Publicada em 20 de março de 2016 - 10:19 • Atualizada em 21 de março de 2016 - 12:21

Pai e filha passeiam pela tradicional, e agora liberada, pelo menos aos domingos, Avenida Paulista
Pai e filha passeiam pela tradicional, e agora liberada, pelo menos aos domingos, Avenida Paulista
Pai e filha passeiam pela tradicional, e agora liberada, pelo menos aos domingos, Avenida Paulista

O macacão branco com o cinturão brilhante tem um decote que vai até o umbigo. A grossa corrente de prata enfeita o peito à mostra, lisinho, perfeitamente depilado. O rosto fica escondido atrás dos óculos escuros de armação dourada. O topete em seus cabelos castanhos escuros está lambuzado de brilhantina. As suíças não deixam dúvida: se trata de um imitador de Elvis Presley. Impossível não parar para conversar com este personagem, que arma seu pequeno palco em frente ao icônico prédio do Conjunto Nacional na esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta.

Pesquisa Datafolha constatou, em outubro, uma aprovação de 45% à decisão da prefeitura de proibir a circulação de carros aos domingos. Hoje esta taxa passou para 61%. E mais: entre os que foram alguma vez na Paulista, 72% aprovaram a decisão e 66% dos que a rejeitaram não pisaram lá após a medida.

O Elvis da Paulista é um típico boa praça. Aquele sujeito que quer ficar bem com todos, tarefa cada vez mais difícil nos dias de hoje. Ele é um dos muitos artistas de rua que divertem os paulistanos nos seus domingos de lazer na Paulista. “Tá bronzeado, hein? Foi pra praia?”, brinca um policial. Os dois ficam de bate-papo enquanto se arrumava o cenário de mais um show na calçada, com letreiro fosforescente: “Welcome to Fabulous Las Vegas”.

Elvis, nascido Márcio Henrique Aguiar, não descansa nunca e domingo é cada vez o dia mais promissor para o seu trabalho. Isso porque a avenida mais famosa de São Paulo fechou para os carros aos domingos, abrindo alas para pedestres, ciclistas, patinadores e skatistas. Nestes dias seu público aumenta. Mas o Elvis tupiniquim não é de comprar brigas e em um momento em que qualquer assunto gera polêmica, ele escorrega. Não quer arriscar perder fãs. Prefere não dizer qual é a sua opinião sobre a decisão do prefeito Fernando Haddad (PT) de impedir que carros trafeguem por lá aos domingos para transformar a principal veia financeira de São Paulo – com seus quase três quilômetros – em uma imensa área de lazer.

Márcio Henrique Aguiar, também conhecido como Elvis, não descansa nunca e faz shows todos os domingos na região
Márcio Henrique Aguiar, também conhecido como Elvis, não descansa nunca e faz shows todos os domingos na região

“Eu não vou dizer se gostei ou não. Tem lado bom e ruim em tudo. E no caso do fechamento da Paulista para os carros também tem. Nos dias de semana a Paulista recebe um tipo de público: os que trabalham por aqui e também os moradores da região. Nos domingos os moradores não frequentam tanto e a Paulista é dominada por pessoas que vem de outros bairros, que querem relaxar por aqui”, conta. Sua observação revela um tom de aprovação à constatação de que o espaço público está sendo oferecido àqueles paulistanos que vivem longe e não têm a oportunidade de frequentar este cartão postal nos corridos dias de semana.

Uma grande batalha foi travada entre a Prefeitura e o Ministério Público Estadual de São Paulo, que se posicionou contra a medida no ano passado, mesmo com as audiências públicas aprovando a ideia. A alegação da prefeitura de que a decisão visa aproximar as pessoas da cidade não foi considerada tão importante pelo MP, que preferiu trazer à tona um documento de 2007, acordado entre os dois lados. Nele se firmava que a Paulista só poderia ser interditada para a realização de três eventos por ano: A Parada Gay (junho), a Corrida São Silvestre e a festa do Reveillon.

O MP alegou que a interdição aos carros prejudicaria o comércio, a mobilidade dos moradores e o acesso de pacientes aos hospitais. Mas a prefeitura fez estudos de impacto com evidências contrárias que foram entregues ao MP. Há mais de 60 prédios comerciais e 15 residenciais na Avenida.

Segundo pesquisas de opinião, a maioria aprova o fechamento da Paulista para os carros aos domingos. O Datafolha, por exemplo, constatou em outubro uma aprovação de 45% à medida. Hoje esta taxa passou para 61%. E mais: entre os que foram alguma vez na Paulista, 72% aprovaram a decisão e 66% dos que a rejeitaram não pisaram lá após a medida.

“Minha irmã veio dos Estados Unidos e quando o viu ficou encantada. Ela fez fotos com você”, diz um senhor, que interrompe a conversa com Elvis. “A Paulista me deu fama. Conheço cada metro dessa avenida aqui. Já encarnei 30 personagens, entre eles Raul Seixas. Mas há três anos fixei no Elvis por causa do sucesso”, contou Márcio, que tinha quatro anos quando seu ídolo morreu, em 1977.

Torcedores do Corinthians protestam contra a tentativa de impeachment da presidente Dilma
Torcedores do Corinthians protestam contra a tentativa de impeachment da presidente Dilma

Ele lembra, com orgulho, que até nas comemorações do aniversário de São Paulo, em janeiro, foi convidado a se apresentar. “Agora muitos me chamam para shows. Estou com a agenda lotada”, diz. Antes do sucesso de seu personagem Elvis, Márcio já havia sido até morador de rua. Foi atendente de bar e garçom. Vendeu o carrinho de sorvete para comprar o violão para, assim, passar a viver do que gostava mesmo de fazer.

Há três anos fez um cursinho introdutório de inglês, e com o seu talento de imitador se vira ao cantar “Love me Tender” ou “Always in my mind”. Se quer partir para outro tipo de vida? “Não, gosto do que faço. Quero ser sempre uma metamorfose ambulante”, diz, parafraseando o sucesso de Raul Seixas. Ele compara a Avenida que lhe deu fama a um mar. “Às vezes está calma, como agora, um domingo de tarde. Ás vezes, do nada surge uma manifestação e aí fica turbulenta”, afirmou, uma semana antes do protesto do último dia 13 contra a corrupção que lotou a Paulista.

Na última sexta-feira, dia 18, foi a vez de a Paulista trocar o figurino: avermelhou-se no ato em defesa da democracia, que reuniu defensores do governo e de Lula, mas também pessoas críticas à administração de Dilma Rousseff e ao ex-presidente. Nos dois protestos, apesar das previsões de ressaca, o mar esteve calmo: a Paulista parece abraçar todas as cores e opiniões. Mas esta passarela dos protestos paulistanos já viu dias conturbados nos últimos anos: atos violentos com quebra-quebra e mais recentemente ataques de radicais a pessoas usando roupas vermelhas e até a vandalização da ciclovia.

Durante os dias de semana a Avenida Paulista se transforma em formigueiro humano. É frequentada por 1 milhão e meio de pessoas por dia. Não há cálculos sobre os domingos para pedestres, mas para quem foi lá no início da medida, em outubro do ano passado, e voltou recentemente, é possível perceber que está aumentando o número de frequentadores.

São mulheres e homens, de todas as idades e cores. Famílias, com cachorros ou não, ciclistas (nas ciclovias), skatistas, patinadores. e até Batmans e Coringas
São mulheres e homens, de todas as idades e cores. Famílias, com cachorros ou não, ciclistas (nas ciclovias), skatistas, patinadores. e até Batmans e Coringas

São mulheres e homens, de todas as idades e cores. Famílias, com cachorros ou não, ciclistas (nas ciclovias), skatistas, patinadores. Uns batem bola, outros jogam peteca. Há os que sentam no asfalto com amigos e familiares para bater papo e relaxar. Hippies modernos vendem brincos de latão e colares de botões. Imigrantes da África vendem batas típicas coloridíssimas, e animais esculpidos em madeira: rinocerontes, elefantes, tartarugas de todos os tamanhos. As mini-bicicletas de arame são um sucesso. Os mais exotéricos podem parar para consultar uma cartomante. Ou então experimentar, de graça, a prática espiritual japonesa do Jyorei no Parque Trianon, o pulmão da Paulista. No Parque, planejado pelo paisagista francês Paul Villon, e que mantém uma flora remanescente da Mata Atlântica, pode-se ter também aulas gratuitas de Lian Gong, técnica chinesa de exercícios para prevenir dores no corpo. De frente para o Trianon, o famoso Masp, Museu de Arte Moderna. Em seu vão, nas manhãs de domingo, há uma tradicional feira de antiquidades.

A caminhada dominical pela Paulista revela surpresas e mais supresas: grupos de rock, de samba, de sons nordestinos, músicos individuais que demonstram suas habilidades no violino, violoncelo, flauta. Com tantas opções, até o Elvis tem concorrência: um Mickael Jackson de jaqueta preta e vermelha faz sucesso com seus passos elásticos.

Você está ali assistindo um sujeito tocando guitarra quando surge do nada um Batman barrigudinho, um Coringa de cabelo verde e terno roxo, acompanhados de um Super Homem barbudinho. Eles posam ao lado do músico para deleite dos passantes, que acionam as câmeras de seus celulares. Alguns fazem dinheiro cobrando dos que querem tirar selfies com bonecos, em tamanho natural, de personagens da família Simpsons de pé ou sentados em um sofá.

Nascida em 1891, a Paulista foi convertida em ícone da aristocracia rural paulista. Naqueles primeiros anos circulavam por lá bondes puxados a burro, carruagens e até versões mais primitivas de bicicletas. Depois os carros dominaram a área. Mas, sinal dos tempos, hoje há até uma Praça dos Ciclistas no seu final. E é lá que os ciclistas paulistanos se encontram para passeios em grupo. No sábado, dia 6, houve a 9ª Pedalada Pelada. É um protesto de ciclistas nus ou semi-nus para lembrar a fragilidade dos corpos e das bicicletas diante dos outros veículos. “Obsceno é o trânsito”, dizia o convite desta ousada manifestação que reuniu 400 pessoas.

Uma antiga brincadeira sobre a Avenida começa a ficar ultrapassada hoje. É o dito que a compara a um casamento: começa no Paraíso e termina na Consolação. Para quem não conhece São Paulo, são dois bairros que dão nomes a estações de metrô nas duas extremidades da avenida. Na época em que o café valia ouro, os serviçais frequentavam a Paulista pelas portas do fundo dos elegantes casarões da elite de São Paulo. Hoje, a avenida é de todos, motorizados ou não. A pé, de bicicleta, de patins ou de skate, a Paulista é uma metamorfose ambulante.

Manifestantes ocupam a paulista em protesto contra a corrupção e em apoio ao trabalho do juiz Sérgio Moro
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Florência Costa

Jornalista freelance especializada em cobertura internacional e política. Foi correspondente na Rússia do Jornal do Brasil e do serviço brasileiro da BBC. Em 2006 mudou-se para a Índia e foi correspondente do jornal O Globo. É autora do livro "Os indianos" (Editora Contexto) e colaboradora, no Brasil, do website The Wire, com sede na Índia (https://thewire.in/).

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