Trilha sonora da tristeza política

Em ato na Cinelândia, eleitor de Lula lembra os que lutaram pela democratização do país

Na lembrança dos jingles, uma história diferente que o tempo se encarregou de tornar igual demais

Por Aydano André Motta | ArtigoODS 9 • Publicada em 18 de abril de 2016 - 08:00 • Atualizada em 18 de abril de 2016 - 11:18

Em ato na Cinelândia, eleitor de Lula lembra os que lutaram pela democratização do país
Em ato na Cinelândia, eleitor de Lula lembra os que lutaram pela democratização do país
Em ato na Cinelândia, eleitor de Lula lembra os que lutaram pela democratização do país

A chave da história – uma delas, ao menos – passa num átimo, dura perto de um segundo, pouco além da metade do vídeo de 1min24s. Cena forte, cuidado. Na euforia da pré-vitória no segundo turno de 2002, mera formalidade diante da abissal diferença para o tucano da hora, o clipe de campanha apresentava compreensível estilo triunfal. Naquele quase minuto e meio, desfilava um Brasil ensolarado, de inegociável euforia, para emoldurar o canto arrebatador:

Chegou a hora, Brasil

Que você tanto esperou

Manda a tristeza embora

Que a mudança começou

Agora vem!

Vem mudar a sua sorte

Nada pode ser mais forte

Que a vontade de mudar

Lelê, lelê, vem!

Ser feliz é seu direito

Solte esse grito no peito

Ninguém vai me segurar

Ôôôô, vem!

O Brasil está unido

E jamais será vencido

Nossa estrela vai brilhar

Vem!

E a estrela da esperança

Do emprego e da mudança

Mora do lado de cá

Agora é Lula

Falta pouco, quase nada

Nossa pátria tão amada

Já não quer mais esperar

Agora é Lula

Por um Brasil diferente

Vem entrar nessa corrente

Aqui é o seu lugar

A internet permite conferir:

Precisamente aos 40 segundos, deitada num leito de hospital (recuperava-se de uma cirurgia), surge Roseana Sarney para, com um sorriso apático, encenar com a mão direita o gesto do “vem” – sem cantar. No reclame, a herdeira de um dos clãs-símbolo do atraso político brasileiro resume a sem-cerimônia da mistura que consolidou o arco generoso de apoios ao virtual presidente eleito. (Pouco antes dela, passa Garotinho com movimento semelhante.) O tempo transformou a geleia numa trágica lição.

O clipe expressa, em sedutora linguagem audiovisual – paga, reza o bafafá judicial que espreita a era petista, pelo dinheiro do mensalão -, o elixir para as três derrotas do torneiro mecânico que sonhava ser presidente. Estava ali o candidato repaginado, “Lulinha Paz e Amor”, sem a barba desgrenhada de 1989, descolado visualmente dos tempos sindicais que causavam pesadelos na elite. Na propaganda eleitoral, Lula reinava grisalho e aparado, embrulhado em ternos impecáveis, sorriso tatuado no rosto. O conteúdo no bojo daquela forma convidava todo mundo – literalmente – para o barco. “Vem!”, convocava o refrão. O atraso veio com tudo.

Eram dias de “A esperança venceu o medo”, o bordão irresistível que varreu a rejeição e levou, afinal, um brasileiro do andar de baixo ao Planalto. No primeiro turno, no jingle mais lindo de todos, a letra espetacular repete a ideia que o tempo, de novo ele, travestiu em ironia: “A favor do que é direito, da decência que restou”, prega um verso. “É o desejo dessa gente, querer um Brasil mais decente”, ratifica outro, mais adiante. Até corações oposicionistas se comoviam:

Não dá pra apagar o sol

Não dá pra parar o tempo

Não dá pra apagar estrelas, que brilham no firmamento

Não dá pra parar um rio, quando ele corre pro mar

Não dá pra calar um Brasil, quando ele quer cantar

Bote essa estrela no peito

Não tenha medo ou pudor

Agora eu quero você, te ver torcendo a favor

A favor do que é direito, da decência que restou

A favor do povo pobre mas nobre, trabalhador

É o desejo dessa gente, querer um Brasil mais decente

Ter direito a esperança, e uma vida diferente

É só você querer, que amanhã assim será

Bote fé e diga Lula, bote fé e diga Lula

Eu quero Lulá

Para citar outra música, quem brincava de princesa, não se acostumou na fantasia. O samba de uma nota só chamado pragmatismo contaminou tudo. Basta observar o primeiro ministério – um time de sonho, com Cristovam Buarque, Marcio Thomaz Bastos, Marina Silva, além de Carlos Lessa (no BNDES) e Luiz Pinguelli Rosa (na Eletrobrás) –, e a depreciação dos quadros, à medida em que a vida real batia cada vez mais forte à porta do poder. No segundo mandato, teve Edison Lobão, filhote do aliado José Sarney (ele mesmo, o pai de Roseana, que ouviu a filha, e veio); Geddel Vieira Lima, do PMDB baiano; e Eunício Oliveira, cearense do mesmo partido, entre muitos outros. Ainda com Lula e depois com Dilma, escancarou-se a porteira para a fina flor do fisiologismo. Por ela entraram PP, PSD, PRB, o baile todo, na versão política de uma roupa bonita que desbotou rápido demais.

Não tem outro jeito, ensina o cotidiano da corte. Durante muitos anos, valeu a pena aturar a proximidade com o repulsivo Brasil de sempre, em nome de mudar a cara de generosos pedaços do país, democratizar o acesso à universidade, bater com força na desigualdade que tristemente nos define como povo. Por isso que dói ver o desfecho melancólico. Tinha tudo para ser diferente, mas acabou ficando igual demais.

Talvez tenha faltado se inspirar, um pouco que fosse, no lindo jingle conceitual, que mora no coração de algumas gerações de eleitores cansados de guerra: o lendário “Lulalá”, que o tempo – de novo e para sempre – transformou em hino à pureza necessária. Porque nem tudo pode ser pragmatismo.

De tão popular, foi exumado do YouTube para ganhar as redes sociais, no Fla-Flu da crise. Chico Buarque (desde sempre) e Lídia Brondi, Betty Faria e Luiz Armando Queiroz, Gilberto Gil e Armando Bogus, José Mayer e Jards Macalé, uma constelação afinada, ensinando algumas lições ao futuro.

Passa o tempo e tanta gente a trabalhar

De repente essa clareza pra votar

Sempre foi sincero de se confiar

Sem medo de ser feliz

Quero ver chegar

Lula lá, brilha uma estrela

Lula lá, cresce a esperança

Lula lá, o Brasil criança

Na alegria de se abraçar

Lula lá, com sinceridade

Lula lá, com toda a certeza pra você

Seu primeiro voto

Pra fazer brilhar nossa estrela

Lula lá, é a gente junto

Lula lá, valeu a espera

Lula lá, meu primeiro voto

Pra fazer brilhar nossa estrela

Tomara que ainda dê tempo para (re)aprender.

(Rápida nota pessoal: você eu não sei, mas eu choro toda vez que ouço esses jingles.)

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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Um comentário em “Trilha sonora da tristeza política

  1. vanessa rizzo disse:

    Eu tb, Aydano, choro toda vez que leio/ouço esses jingles, e qdo lembro da emoção que eu (pobre, moradora da z. oeste, filha de operário – mecânico da finada Fábrica Bangu) senti qdo o Lula tomou posse no primeiro mandato…

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