O Titanic da folia

Dois foliões se divertem nas ruas do Rio. Foto de Antonio Scorza

A difícil arte de organizar as narrativas em pleno Carnaval

Por Leo Aversa | ArtigoODS 11 • Publicada em 27 de fevereiro de 2017 - 16:13 • Atualizada em 2 de março de 2017 - 11:48

Dois foliões se divertem nas ruas do Rio. Foto de Antonio Scorza
Dois foliões se divertem nas ruas do Rio. Foto de Antonio Scorza/AFP
Dois foliões se divertem nas ruas do Rio. Foto de Antonio Scorza/AFP

São cinco da manhã e o Conduzindo a Narrativa começa o seu desfile pelas ruas da Gamboa. O horário foi escolhido de propósito, para afastar os forasteiros e curiosos. O Conduzindo, segundo seus próprios fundadores, é o único representante do legítimo espírito do Carnaval. Só ele alia atitude e conceito, teoria e prática. Só ele usa instrumentos acústicos e vintage, o que por sua vez faz com que a maioria dos seus foliões tenha que ficar calado e prestar muita atenção para ouvir a música. De longe não se sabe se é um bloco, uma procissão ou um cortejo fúnebre. Melhor assim, o Conduzindo a Narrativa abomina rótulos.

O bloco segue seu desfile lacrador quando de um beco surge uma senhora, de uns sessenta anos, muito bêbada. Ela vê o cortejo e sai correndo para se enturmar.

– Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é!? será que ele é!?

Ela é albina.

E usa um turbante.

Os integrantes do Conduzindo congelam. O choque cultural pode ser ouvido em Niterói. O Conselho de Legitimidade e o Comitê de Apropriação cercam a senhora, que não entende o que dizem.

De uma casa caindo aos pedaços aparece outra mulher, um pouco mais velha. Ela também está bêbada. Ou chapada. É negra e usa chapéu de caubói. Ao ouvir a outra cantando responde de bate pronto

– Bicha!

As duas se encontram, se beijam na boca e continuam

– Será que ele é bossa nova? Será que ele é Maomé?

Neste momento, integrantes do bloco – os que não ficaram catatônicos –  pegam seus MacBooks Pro e começam a inundar o Facebook com textões herméticos. Outros se ajoelham, olham para o céu e começam a dizer coisas sem sentido. Vários dão cabeçadas nos muros de chapisco.

Eis que sai de um bar próximo um japonês, com peruca black power, microssaia, meias arrastão, polo Ralph Lauren e salto alto. Vem cantando.

– Maria sapatão, sapatão, de dia é Maria, de noite é João…

O Conduzindo já não faz jus ao nome. Está à deriva.

O Japa beija os músicos na boca e só se detém diante das senhoras. Os três se abraçam e saem num lascivo trenzinho. O japonês é o maquinista. Agora canta a plenos pulmões:

– …Mas como a cor não pega, mulata / mulata, eu quero o teu amor…

Dito isso, dá um amasso na mulher com chapéu de caubói. Os dois rolam no chão. A de turbante se joga em cima deles.

O Conselho Supremo do Conduzindo, apavorado, liga para a polícia. Ninguém atende.

Eis, então, que surge uma dupla de esquimós, com pintura Xavante, entoando “Evidências” em ritmo de samba. O Conduzindo a Narrativa já desapareceu. Restaram três músicos contratados, as duas senhoras e o japa. Todos se juntam e saem pelas ruas do centro histórico, cantando desafinados.

– E neeeeessaaaaa loucuuuuuuura de dizeeeeer que naaaaão…

Leo Aversa

Leo Aversa fotografa profissionalmente desde 1988, tendo ganho alguns prêmios e perdido vários outros. É formado em jornalismo pela ECO/UFRJ mas não faz ideia de onde guardou o diploma. Sua especialidade em fotografia é o retrato, onde pode exercer seu particular talento como domador de leões e encantador de serpentes, mas também gosta de fotografar viagens, especialmente lugares exóticos e perigosos como Somália, Coreia do Norte e Beto Carrero World. É tricolor, hipocondríaco e pai do Martín.

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