Fim de uma era no combate às drogas

A guerra às drogas, bandeira do então presidente Nixon, encampada nos anos 90 pela ONU, será oficialmente encerrada na próxima semana em Nova York

Documento da ONU desaconselha a repressão, consumo vira caso de saúde pública

Por Helena Celestino | ArtigoODS 3 • Publicada em 19 de abril de 2016 - 08:00 • Atualizada em 24 de abril de 2016 - 15:10

A guerra às drogas, bandeira do então presidente Nixon, encampada nos anos 90 pela ONU, será oficialmente encerrada na próxima semana em Nova York
A guerra às drogas, bandeira do então presidente Nixon, encampada nos anos 90 pela ONU, será oficialmente encerrada na próxima semana em Nova York
A guerra às drogas, bandeira do então presidente Nixon, encampada nos anos 90 pela ONU, será oficialmente encerrada na próxima semana em Nova York

“Seja realista, peça o impossível”.

A palavra de ordem libertária dos protestos de jovens deixou de ser uma provocação com ares anarquistas: o impossível dos anos 60 virou realidade mais de meio século depois. A guerra às drogas, bandeira do então presidente Nixon, encampada nos anos 90 pela ONU, será oficialmente encerrada nesta semana em Nova York. Ainda que não transforme em feriado o Dia da Maconha – informalmente comemorado no dia 20/04 – o documento, a ser assinado nesta quinta-feira, 21, por 192 países, desaconselha a repressão aos usuários de drogas e considera o consumo de substâncias proibidas um problema de saúde pública.

Existe uma ruptura de conceito. Antes era impossível falar em direitos humanos, em redução de danos, era impossível países defenderem políticas diferentes de drogas

E dai? Este documento final da Sessão Especial da ONU sobre Drogas, que começa nesta terça, é todo escrito em linguagem diplomática. Mas, com meias palavras, oficializa uma nova narrativa sobre o consumo de entorpecentes, muito diferente da construída sob pressão americana no último encontro internacional de 18 anos atrás, em que a palavra de ordem era “um mundo livre das drogas” e para isso considerava necessário prender qualquer jovem com um baseado na mão.

Tá bom, nesse tempo o mundo mudou muito mais. A produção da maconha legal começou no Uruguai e este ano já será vendida em farmácias a usuários cadastrados. Nos Estados Unidos, 30 estados liberaram o consumo medicinal da cannabis e provavelmente em novembro a Califórnia se junta a Washington, Denver e Colorado na permissão para a marijuana ser usada por puro prazer. Ano passado, o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, lançou um programa de “maconha legal” e a Suprema Corte do México autorizou o porte de marijuana para uso pessoal.

“Nada disso fez o consumo explodir, a venda da droga legal dá menos dinheiro do que Viagra”, diz Rubens César Fernandes, do Viva Rio, que acompanha e batalha por mudanças há anos.

Aconteceram muitos avanços, mas todos eles infringiam a convenção internacional da ONU. Apesar do fracasso retumbante da guerra às drogas, qualquer país que legalizasse a maconha poderia ser punido e a agência das Nações Unidas em Viena manteve pressão contra as políticas heterodoxas como as do Uruguai e dos EUA – claro que de maneira desigual, muita ameaça de punição ao governo de Montevidéu e nenhuma sobre Washington. Sob pressão dos latino-americanos na abertura da assembleia geral, em 2012, foi marcada a sessão especial da próxima semana para rever os acordos sobre o assunto. Antes disso, ex-chefes de Estado – Fernando Henrique Cardoso, Ernesto Zedillo (México) e César Gaviria (Colômbia) participaram de um grupo de notáveis, cuja recomendação principal era descriminalizar as drogas. Na véspera da abertura da reunião, eles e mais mil personalidades assinaram uma carta enviada ao secretário-geral das Nações Unidas pedindo uma política mundial de drogas com ênfase nos direitos humanos.

“Existe uma ruptura de conceito. Antes era impossível falar em direitos humanos, em redução de danos, era impossível países defenderem políticas diferentes de drogas”, diz Pedro Abramovay, diretor da Open Society e secretário de drogas durante um curto período no primeiro mandato de Dilma.

Agora, tudo isso estará no relatório final da conferência, um documento árido e longo, negociado pelos 53 países da Comissão de Entorpecentes da ONU desde o segundo semestre do ano passado e mandado de Viena para Nova York com todos os pontos já fechados. Para conseguir consenso, nenhuma das novas políticas recomendadas estará claramente explicitada – não se fala em descriminalização das drogas nem em redução de danos, mas os conceitos estão lá, informa um especialista do governo brasileiro. Menciona-se pela primeira vez a proporcionalidade das penas por drogas – numa crítica à condenação à morte de traficantes em alguns países – as palavras direitos humanos e saúde pública pipocam por todo o texto. O documento tem 24 páginas para acomodar todas as idiossincrasias dos países e usa linguagem dúbia o suficiente para ser assinado por nações com políticas muito repressivas como as da China, Irã, Indonésia e Paquistão e pelos europeus e americanos, com leis mais cuidadosas com os direitos humanos.

“Foi o equilíbrio possível, a mensagem principal é a ênfase nos direitos humanos e na saúde pública”, diz satisfeito um técnico brasileiro.

“É um avanço, mas vários países continuarão a fazer absurdos na política de drogas sob as bençãos da ONU”, critica Abramovay.

Serão três dias de reuniões plenárias e debates paralelos, com a assinatura do documento final por todos os membros da ONU – pelo menos este é o roteiro diplomático estabelecido. Na agenda da presidente Dilma Roussef ainda consta a viagem para Nova York e no calendário da conferência ela seria a segunda a discursar”. Se vai, “só Deus sabe”, dizem os diplomatas. A ala latino-americana ficou do lado da mudança, liderada pelo presidente Eduardo Santos, da Colômbia, apoiada pelo Brasil e por todos os países da região.

A ousadia de agora ainda parece pequena demais para o turbulento século XXI. A guerra às drogas consumiu muitos bilhões, não diminuiu o consumo, aumentou a violência, encheu as cadeias ao redor do mundo, punindo especialmente negros e pobres. Nos Estados Unidos, por exemplo, eram 1,6 milhão de presos em 2013, 50% dos encarcerados em instituições federais e 20% nos estados. Estavam lá por consumirem ou venderem drogas. No México, o combate ao tráfico por forças militares provocou 164 mil assassinatos entre 2007 e 2014, mais do que o número de mortos na guerra do Iraque e Afeganistão, segundo relatório publicado na revista Lancet.  O Brasil, desde 2006, prevê que o usuário de drogas não deve ser encarcerado, não endossa a tese da descriminalização, mas sim a despenalização – ou seja, continua sendo crime, mas o consumidor não deve ir para a cadeia. O problema é que a lei não tipifica o traficante, deixa à polícia a decisão de considerar traficante ou usuário as pessoas com pequenas quantidades de drogas. O resultado é o óbvio: negros, pobres e moradores em favelas acabam sendo mandados para a cadeia, onde podem ficar por até oito anos.

“A posição brasileira é mais aberta nas negociações internacionais do que internamente”, diz Abramovay.

A despenalização do usuário de drogas no Brasil está para ser julgada no Supremo Tribunal Federal: três ministros já deram seu voto, mas Teori Zawaski pediu vistas do processo. E, como sabemos, está ocupadíssimo no momento.

Helena Celestino

Jornalismo é um vício assumido, é difícil me imaginar longe da notícia. Acostumei a viver com o dedo na tomada: aprendi isto trabalhando, viajando pelo mundo e sendo por muitos anos editora executiva do Globo.

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