Fábula real de tolerância no ritmo do samba

Lavagem da Sapucaí reúne fieis de várias religiões e faz sonhar com uma cidade mais feliz

Por Aydano André Motta | ArtigoODS 9 • Publicada em 20 de fevereiro de 2017 - 14:33 • Atualizada em 3 de fevereiro de 2018 - 15:32

Baianas na lavagem da Passarela: defumadores, água de cheiro e lágrimas emocionadas. Foto de Ricardo Almeida

A cidade lá fora pode seguir seu destino de dar errado, mergulhada no caos de violência, poluição, estresse – mas aqueles 800 metros mágicos desenharam o sonho real de uma terra pacata, tolerante, feliz. A esperança desfilou impecável, de branco, com cheiro de arruda, no ritmo preciso de sambas lendários, para lavar a Sapucaí. A festa que os leigos entendem pagã – sabem de nada, inocentes – ensinou, de novo, como pode ser a vida em paz entre os diferentes formatos da fé. Falta só a cidade aprender.

Pena que tanta emoção não tenha sensibilizado o prefeito Marcelo Crivella. O bispo licenciado da Igreja Universal faltou à celebração, demonstrando não entender a importância de momentos como o da mágica noite de domingo para a cidade que governa.

O ritual inspirado nos protocolos das religiões de matriz africana aconteceu pelo sexto ano seguido, no domingo anterior ao Carnaval. Antes do último ensaio técnico (da Mangueira, desta vez), a Passarela, arrumada com roupa de festa, recebeu milhares de baianas, com arruda, flores usadas nos rituais, água de cheiro, vassouras e defumadores. Mães de santo, mães do samba, elas limparam os caminhos para a folia passar.

Em pouco mais de uma hora, as 50 mil pessoas que lotaram boa parte das frisas e arquibancadas – a maioria vestida de branco, como convém – louvaram as baianas e receberam suas bênçãos. Mas não foi uma festa somente do candomblé e da umbanda. No altar dos bambas, tem lugar para todo mundo, todos os credos, basta se chegar.

A lavagem abriu os caminhos para a alegria do jovem passista
A lavagem abriu os caminhos para a alegria do jovem passista

Como prova, à frente do cortejo, estava a imagem de São Sebastião, padroeiro do Rio (e Oxóssi, no sincretismo), conduzida respeitosamente, guardada por padres católicos. No início da cerimônia, um deles rezou o Pai Nosso no microfone, e a avenida ouviu com a devida reverência. (O cardeal-arcebispo do Rio, Dom Orani Tempesta, mantém convivência fraterna com os sambistas, e costuma abençoar os carros alegóricos ainda nos barracões da Cidade do Samba.)

Em seguida, o samba saiu, para conduzir o cortejo das baianas. Dudu Nobre comandou o carro de som, começando com “Cidade Maravilhosa”, seguida por hinos das escolas do Grupo Especial, cantados em carnavais do passado, e acompanhados em coro pela plateia, para dobrar a emoção. Ao longo do desfile, as baianas se aproximavam das frisas, para estender o axé ao povo que se apertava ali. Pegavam fios de conta, molhavam na água de cheiro e devolviam às pessoas em lágrimas. Distribuíam galhos de arruda, espalhando o cheiro pela avenida.

Mais uma vez, a lavagem “abriu os caminhos” (como ensinam os iniciados no axé) para o epílogo da odisseia carnavalesca – sim, o desfile é o capítulo derradeiro do trabalho iniciado meses antes, no meio do ano anterior. A festa nasceu da mente inventiva de Elmo José dos Santos, diretor de Carnaval da Liga Independente das Escolas de Samba, ex-ritmista e ex-presidente da Mangueira. “Sei da importância e do fundamento religioso das escolas. Quis trazê-los para a avenida”, relembra ele.

Elmo, então, procurou pais e mães de santo das integrantes do Grupo Especial para montar o roteiro da cerimônia. Hoje, participam baianas do Carnaval de São Paulo e de outras cidades do Brasil. “A Passarela é um lugar de muitas energias. Estendemos os cuidados das escolas a todos os sambistas e contamos com a participação de fieis de todas as religiões. É um momento bonito, bom de se viver”, constata o dirigente.

Pena que tanta emoção não tenha sensibilizado o prefeito Marcelo Crivella. O bispo licenciado da Igreja Universal faltou à celebração, demonstrando não entender a importância de momentos como o da mágica noite de domingo para a cidade que governa.

Uma terra necessitada da tolerância exibida pela tribo do samba.

 

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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