Em defesa de Nietzsche (com S) e Hegel

Denúncia do Ministério Público de SP é recheada de citações errôneas e faz resumo pueril e irresponsável de pensadores históricos

Por Renato Galeno | Artigo • Publicada em 11 de março de 2016 - 10:00 • Atualizada em 13 de março de 2016 - 14:28

Nietzsche/Sr.X

Entre os méritos das recentes ações desencadeadas no âmbito da Operação Lava-Jato está a abertura de oportunidades para debates relacionados a questões que vão muito além das operações policiais. É uma chance que, acredito, está proporcionando a milhares de professoras e professores e a milhões de pais e mães discutir questões relacionadas ao que Aristóteles sabiamente se referiu com a singela expressão “vida boa”: o que uma sociedade, este conjunto de pessoas que decidiu viver junto num espaço territorial, quer para si mesma? O mundo em sociedade, inclusive o mundo político, não se resume à descrição do que Nelson Rodrigues (com ecos distantes, mas bem nítidos, de Maquiavel) chamaria de “a vida como ela é”. Professores e pais (e sou pai e professor) ganharam contexto para falar com os mais jovens sobre a “vida como ela deve ser”.

Filosofia política deixou de ser algo que, não sei por que cargas d’água, passou a ser considerada inútil no debate político brasileiro

Apanhei a mim mesmo explicando para meus alunos o conceito de Aletheia – Parmênides e Heidegger no Jornal Nacional! Para minha filha de 7 anos, e até mesmo para a de 4, o profundo significado por trás da expressão “erga omnes” – por trás do “juridiquês” dos “direitos e obrigações que valem igualmente para todos” está a intuição de Rousseau, posteriormente formalizada por Kant, de que as pessoas são iguais. Filosofia política deixou de ser algo que, não sei por que cargas d’água, passou a ser considerada inútil no debate político brasileiro. Pelo contrário, tornou-se um dos fundamentos que podem iluminar nossa saída do “mundo como ele é” para que retomemos as rédeas de sociedade tal qual ela deve ser – ou que pelo menos nos permita ter esta esperança.

Daí minha tristeza com a denúncia do Ministério Público de São Paulo contra o ex-presidente Lula. Não quero, nesta oportunidade, mencionar as avaliações até mesmo da oposição ao teor excessivamente politizado do texto, ou às suas alegações de caráter prático. Fico apenas no que toca ao renovado interesse pela filosofia política. Em outras palavras, quero aqui defender não os que foram acusados formalmente, mas outros potenciais “investigados”: Nietzsche (com “S” – este tal “Nietzche” da denúncia eu desconheço) e Hegel não mereciam ser acusados de pensar o que lhes foi imputado.

A denúncia, em seu “preâmbulo” na seção relativa aos “fundamentos fático-jurídicos” do pedido de prisão de Lula, apresenta trecho de conhecida obra de Nietzsche na qual ele afirma que jamais existiu um “Super-homem”, e a denúncia chega à duvidosa (para dizer o mínimo) conclusão de que o controverso filósofo alemão “estabelece que todos os seres humanos se encontram em um mesmo plano”. Se Nietzsche faz (ou assim pareceu fazer aos autores da denúncia) isso, é para lamentar. Num resumo quase irresponsável da complexa e talvez ambígua obra de Nietzsche, ele, o Super-homem, quer separar-se da multidão de “escravos”, da massa. Isso significa não apenas não fazer parte dela, mas não ter qualquer contato com ela.

Este é um dos pontos mais estudados por não-especialistas em Nietzsche, pelo simples fato de que houve tentativas (hoje desacreditadas) dentro do movimento nazista para interpretar Nietzsche como validando Hitler. Revoltaria Nietzsche imaginar um Super-homem na massa popular, num comício ou manifestação (como parece ser a lógica por trás do pedido de prisão preventiva da denúncia do MP de São Paulo). Para Nietzsche, seguir um líder (um “Super-homem”, uma “besta loura”) tudo bem, mas não dentro de um regime democrático: massas não devem votar, devem seguir autocratas. Mas, em última instância, num autor que muitos consideram desprovido de uma filosofia política, o movimento intelectual que ele faz é essencialmente individual – portanto, não relativo à vida em sociedade, nem à dominação política.

A denúncia também ataca “Marx e Hegel”. Ela diz que “as atuais condutas” de Lula “certamente deixariam Marx e Hegel envergonhados”. Se a ideia é apenas partir do pressuposto que o ex-presidente desviou dinheiro de alguma forma (algo que ainda não se pode falar, pois ele sequer é réu em qualquer acusação), não apenas Marx e Hegel, mas qualquer outra personalidade histórica ou atual honesta ficaria envergonhada.

Agora, entendo que a intenção é traçar algum tipo de traição a princípios de “Marx e Hegel” que teriam sido traídos por Lula. Não encontro qualquer tipo de relação lógica nesta afirmação. Talvez seja a interpretação do mundo como uma evolução necessária dos fatos num determinado sentido (a pretensiosa ideia de uma “filosofia da história”); ou ao recurso formal da dialética que ambos autores fazem. Mas, além disso, como hoje se diz nas redes sociais, não sou capaz de opinar…

O que me ocorreu é a possibilidade de os autores da denúncia terem ligado Lula ao comunismo filosófico do qual Marx certamente fez parte (possivelmente como o mais influente entre os pensadores desta corrente). Movimento do qual Hegel de forma alguma faz parte. Teriam eles confundido Hegel com Engels?

Vou pedir para que meus alunos não leiam esta denúncia. E, com as minhas filhas, só vamos ler gibis – pelo menos nos próximos dias…

Renato Galeno

Jornalista e professor, Renato Galeno foi repórter do Dia e do Globo antes de se dedicar à carreira acadêmica. Mestre em Relações Internacionais e doutorando em Ciência Política pela UFF, é professor do Ibmec e comentarista da GloboNews

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *