Disputa pela fé no Brasil

A cruz é o maior de todos os símbolos da Igreja Católica, que está perdendo a briga pelo monopólio religioso no país. Foto de Luiz Souza/ NurPhoto/ AFP

País caminha a passos largos para abandonar a secular hegemonia católica

Por José Eustáquio Diniz Alves | ArtigoODS 10 • Publicada em 15 de fevereiro de 2017 - 09:00 • Atualizada em 20 de julho de 2021 - 16:06

A cruz é o maior de todos os símbolos da Igreja Católica, que está perdendo a briga pelo monopólio religioso no país. Foto de Luiz Souza/ NurPhoto/ AFP

A Reforma Protestante completa 500 anos. Seu marco inicial foi o dia 31 de outubro de 1517, quando o monge Martinho Lutero afixou na porta da Igreja de Todos os Santos, na pequena vila de Wittenberg, na Alemanha, suas 95 teses, em que denunciava a corrupção na Igreja Católica Romana, pela venda maciça de indulgências aos pecados dos fiéis. Foi o começo de um movimento que iria mudar a Europa e o mundo nos séculos seguintes.

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O grande sociólogo alemão Max Weber, no famoso livro “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, mostra as afinidades eletivas entre o comportamento econômico e suas raízes religiosas. Partindo de evidências empíricas, Weber percebeu uma relação estatística positiva entre a liderança capitalista, a força de trabalho mais qualificada e as regiões mais ricas da Europa e dos Estados Unidos com a filiação religiosa ao protestantismo.

Para Weber, o espírito do capitalismo (incessante acumulação do capital por meio do crescimento do mercado e do avanço das forças produtivas) foi impulsionado, de forma “não antecipada”, pela ética protestante, particularmente, o “protestantismo ascético’; ou “puritanismo”. O capitalismo nascente exigia grandes jornadas de trabalho e altas taxas de poupança e investimento para viabilizar a “Riqueza das Nações” (como mostrou Adam Smith).

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O capitalismo moderno

A Reforma Protestante gerou uma mudança cultural. O protestantismo modificou a visão pejorativa sobre a riqueza predominante entre os católicos. Nunca a acumulação material e o dinheiro foram vistos de forma tão positiva. Mas a riqueza não era vista como um fim em si mesma e sim como comprovação da idoneidade religiosa dos indivíduos. Os fiéis tinham que provar sua devoção religiosa com base no trabalho árduo, sério, honesto e disciplinado.

Na teoria weberiana, o “desencantamento do mundo” foi fundamental para eliminar a magia como meio de salvação e fortalecer o processo de racionalização da cultura ocidental de base iluminista. Desta forma, a religião protestante contribuiu para a formação do empresário moderno e do trabalhador urbano-industrial.

Para Weber, o espírito profissional da modernidade tem sua raiz na moral religiosa e no ascetismo puritanos. Assim, historicamente, o capitalismo se desenvolveu com mais intensidade nos países de maioria protestante e, esses países são exatamente os que predominam no grupo das nações de maior renda e de maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

O sociólogo alemão Max Weber foi um dos primeiros a mostrar a relação entre o comportamento econômico e as raízes religiosas. Foto Leemage
O sociólogo alemão Max Weber (de barba) foi um dos primeiros a mostrar a relação entre o comportamento econômico e as raízes religiosas. Foto Leemage

A Reforma Protestante distante da América Latina

A Reforma Protestante se espalhou por norte da Europa, Grã-Bretanha (Igreja Anglicana), Estados Unidos e Oceania. Porém, os reinos de Portugal e Espanha, sob a batuta do Vaticano, mantiveram a hegemonia católica na América Latina nos séculos seguintes e conseguiram manter os partidários da Reforma distantes do Brasil.

A ascensão dos evangélicos pentecostais no Brasil não está ligada ao processo de “desencantamento” ou “dessacralização” do mundo”, mas sim da comercialização do sagrado

O projeto colonizador português estabeleceu como meta prioritária a “conquista espiritual do Novo Mundo”. O capitão-mor, Pedro Álvares Cabral, era cavaleiro da Ordem de Cristo. As velas das naus de Cabral estampavam a Cruz de Malta. O primeiro nome do Brasil foi Ilha de Vera Cruz e o segundo, Terra de Santa Cruz. A Primeira Missa foi rezada por Frei Henrique de Coimbra, no domingo de Páscoa, 26 de abril de 1500. Em 1548, chegaram os primeiros dois missionários Jesuítas, pertencentes à Companhia de Jesus, iniciando-se a catequese da população indígena e não indígena.

Mas os protestantes fizeram, pelo menos, duas tentativas (fracassadas) de romper com o domínio católico no Brasil Colônia. A primeira foi liderada por Nicolas de Villegagnon (que foi colega de João Calvino na universidade em Paris), quando tentou implantar a França Antártica, no Rio de Janeiro, entre 1555 e 1560. A segunda tentativa foi com Maurício de Nassau (ele teve educação calvinista em Basileia na Suíça), quando instalou uma Colônia Holandesa, em Pernambuco, entre 1637 e 1654.

Com a abertura dos portos às “Nações Amigas”, em 1808, e a Independência do Brasil, em 1822, houve uma certa flexibilização religiosa e os primeiros protestantes começaram a chegar ao país em função da imigração de ingleses, alemães luteranos (especialmente no Rio Grande do Sul e na região serrana do Espírito Santo) e suíços (Nova Friburgo, no Rio de Janeiro).

A rebelião na Igreja

Todavia, o censo demográfico de 1872 registrou que os católicos representavam 99,7% da população brasileira (os protestantes eram 0,1%). Com a Proclamação da República, em 1889, o catolicismo deixou de ser a religião oficial do país. Ainda assim, o censo demográfico de 1990 registrou que os católicos representavam 98,9% da população brasileira (os protestantes aumentaram para 1%).

A presença dos protestantes tradicionais, também chamados de “evangélicos de missão”, aumentou continuamente mas em ritmo lento, ao longo do século 20, no Brasil. Mas a grande novidade do século passado foi o surgimento, nos Estados Unidos, dos evangélicos pentecostais. Logo em seguida as denominações pentecostais começaram a desembarcar no Brasil, mudando a configuração religiosa do país.

A primeira onda pentecostal chegou em 1910, com a fundação da Congregação Cristã no Brasil e, em 1911, com a Assembleia de Deus. A segunda onda teve início em 1950 com a fundação da Igreja do Evangelho Quadrangular (I.E.Q). A terceira e mais impactante, com os neopentecostais, teve início na década de 1970 e deu origem a Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus, Igreja Renascer em Cristo etc.

O censo demográfico de 1940 mostrou que 95,2% dos brasileiros se autodeclaravam católicos, 2,6% evangélicos (protestantes tradicionais mais pentecostais), 1,9% de outras religiões e 0,2% de pessoas sem-religião. Todavia, nas décadas seguintes o quadro religioso começou a mudar em ritmo um pouco mais rápido. Em 1991, os católicos caíram para 83%, os evangélicos subiram para 9%, as outras religiões passaram para 3,3%, enquanto o número de pessoas sem religião deu um salto para 4,7%.

A disputa de espaço

A partir daí, houve uma aceleração das transformações religiosas. Os católicos, mesmo continuando o grupo majoritário, perderam espaço em termos absoluto e relativo. Os evangélicos, em sua multiplicidade e diversidade, se afirmam como o grupo mais dinâmico. Mas também aumentaram as demais denominações não cristãs e o número de pessoas que se declaram sem religião.

O censo de 2010 mostrou os católicos com 64,6%, o conjunto dos evangélicos com 22,2% (sendo 4% para os evangélicos de missão, 13,3% para os evangélicos pentecostais e 4,9% para os evangélicos não determinados), as outras religiões passaram para 5,2% e as pessoas que se declaram sem religião somaram 8,0%. A perda de adeptos da Igreja Católica tem sido maior entre as mulheres, os jovens e os pobres das áreas suburbanas.

Isto quer dizer que o Brasil está passando por uma mudança de hegemonia entre os dois grupos cristãos (católicos e evangélicos). Os católicos são os doadores universais. No saldo do trânsito religioso entre 1991 e 2010, para cada 100 pessoas que abandonam o catolicismo,  72 foram para as filiações evangélicas, 18 para os sem religião e 10 para as outras religiões.

O gráfico abaixo apresenta uma projeção linear da transição religiosa no Brasil até 2040. Se as tendências das últimas duas décadas forem mantidas, os evangélicos ultrapassarão os católicos em 2036, sendo que, em 2040, os católicos terão 35,5% das filiações religiosas e os evangélicos 43%. As outras religiões e os sem-religião que representavam 8% da população em 1991, deverão chegar a 21,4% em 2040.

Gráfico sobre religiões no Brasil. Arte de Fernando Alvarus
Arte de Fernando Alvarus

Portanto, este quadro caracteriza bem a transição religiosa, representada pela possível mudança de hegemonia entre os dois maiores grupos e o aumento da pluralidade religiosa (incluindo o crescimento dos ateus, agnósticos e pessoas que se declaram sem religião).

A transição religiosa

O IBGE não fez nenhuma sondagem sobre religião na atual década. Mas pesquisa do Instituto Datafolha, divulgada no dia de Natal (25/12/2016), mostra que a percentagem de católicos caiu de 63% em 2010 para 50% em 2016, os evangélicos subiram de 24% para 29%, os sem religião de 6% para 14% e as outras denominações permaneceram com 7%, no período. Desta forma, segundo o Datafolha, o processo de transição religiosa continua e se acentua nos últimos anos.

Ou seja, depois de 500 anos do início da Reforma Protestante, o Brasil caminha a passos largos para abandonar a hegemonia católica, ter maior pluralidade religiosa e ver os evangélicos – principalmente as correntes pentecostais e neopentecostais – se tornarem o grupo religioso majoritário, embora sem maioria absoluta.

Há quem veja com bons olhos esse processo. Logo após as eleições municipais de 2016, o ex-ministro Mangabeira Unger elogiou a ascensão política dos evangélicos e discordou da interpretação de que a eleição representou o avanço da direita e do conservadorismo pelo país. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo (05/11/2016) ele disse: “O desmerecimento preconceituoso dos evangélicos é um dos maiores escândalos de nossa vida nacional. Eles encarnam a nova consciência que se afirma no país: cultura de autoajuda e de iniciativa”.

Mas há também aqueles que entendem que a transição religiosa no Brasil não segue uma linha weberiana. O sociólogo Flávio Pierucci, em artigo póstumo, considera que a ascensão dos evangélicos pentecostais no Brasil não está ligada ao processo de “desencantamento” ou “dessacralização” do mundo, mas sim da comercialização do sagrado.

A bancada da Bíblia

De fato, a teologia da prosperidade, que faz tanto sucesso e é tão cara às correntes neopentecostais, nada tem a ver com o puritanismo ascético e a moral tradicional protestante. O comportamento da chamada “Bancada da Bíblia” no Congresso Nacional não tem se pautado, necessariamente, pelos princípios do “trabalho árduo, sério, honesto e disciplinado”.

Mas o lado positivo de todas essas transformações é que o fim do monopólio religioso já está abrindo novas opções de escolha para a população, pois a concorrência religiosa obriga as igrejas a atenderem as demandas de seus filiados. No contexto do fortalecimento do Estado Laico e de uma nação mais secularizada, a competição entre as organizações religiosas, oferecendo serviços diferenciados, pode tornar a sociedade mais vibrante e dinâmica. Pelo menos, essa é uma das expectativas com a transição religiosa no Brasil.

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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3 comentários “Disputa pela fé no Brasil

  1. Stefano disse:

    Minha opinião é capaz da % de evangélicos e sem-religião ser bem maior que o censo aponta.
    Pois muitos que se dizem católicos não o são na prática.
    De fato… os evangélicos tomaram conta da periferia…. existem n igrejas evangélicas lá… praticamente não existe católicas…

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