O capitalismo pode salvar o capitalismo? – Parte 2

Manifestação em Madri: “Todos contra o neoliberalismo”. AFP Photo/ Dominique Faget

Como a ascensão do neoliberalismo levou ao desastre que vivemos

Por José Eduardo Mendonça | ArtigoODS 12 • Publicada em 19 de junho de 2017 - 09:30 • Atualizada em 21 de junho de 2017 - 16:06

Manifestação em Madri: “Todos contra o neoliberalismo”. AFP Photo/ Dominique Faget
Manifestação em Madri: “Todos contra o neoliberalismo”. AFP Photo/ Dominique Faget

Em post anterior examinamos a possibilidade de uma nova economia, colaborativa e baseada na partilha, fazer brotar um regime capitalista de face mais humana. Isto pode parecer uma contradição em termos, para pensadores no lado mais radical do espectro do pensamento econômico.

O guru desta proposta, o escritor Jeremy Rifkin, autor de diversos livros, como O Fim dos Empregos, e presidente da Foundation on Economic Trends, não se cansa de pregar este credo. O problema desta crença é que seus teóricos pouco consideram como esta transição poderia de fato acontecer. Isto teria que ocorrer em meio a uma exacerbação do quadro atual, no qual o neoliberalismo busca mais um fôlego através de políticas que apenas beneficiam, mais que nunca, o um por cento da população que detém quase metade da riqueza mundial. O caminho não vai ser tranquilo. Ao menos, economistas de sólida bagagem e alto prestígio se empenham em mostrar ao mundo como a ascensão do neoliberalismo levou ao desastre que vivemos e a apontar um caminho para ação consequente, e não paliativa.

A liberdade que o  neoliberalismo promete  é a liberdade para os grandes, não os pequenos. A liberdade de envenenar rios, colocar trabalhadores em risco, de cobrar taxas de juros absurdas e criar instrumentos financeiros exóticos

Afinal, o que é o neoliberalismo? O termo foi cunhado em um encontro em Paris em 1938, tempo de um sistema global à beira da Segunda Guerra. Entre os economistas presentes a esta reunião, dois deles, os conservadores Ludwig von Mises e Friedrich Hayek, vieram a definir o conceito. Ambos exilados da Áustria depois da chegada do nazismo, acreditavam que social democracia, como exemplificada pelo New Deal de Franklin Roosevelt, baseado na intervenção do estado na economia, e o crescimento do estado do bom estar social, não eram palatáveis. Apoiada nas teorias de Lord Keynes, a social democracia era vista pelos dois economistas conservadores como portadora do risco de um coletivismo que levaria à adoção de regimes de feição nazista ou comunista.

 

Ronald Reagan e Margareth Thatcher: o neoliberalismo no poder. AFP Photo/ Wade Byars

O planejamento estatal, dizia Friedrich Hayek em A Estrada para a Servidão, conduziria ao esmagamento do individualismo e ao controle totalitário. Seu trabalho chamou a atenção dos ricos, que viram em sua filosofia uma oportunidade de se libertarem das regulamentações e impostos. Assim foi feito, e assim continua sendo.

Já em meio ao governo de Ronald Reagan, que junto com Margareth Thatcher contribuiu para o domínio mundial do neoliberalismo, Hayeck disse, em conferência em 1983: “Não é exagero afirmar que o objetivo central do socialismo é desacreditar a moral tradicional que nos mantêm vivos”. Por “socialismo”  ele queria dizer a sociedade do bem estar social e seus benefícios aos povos, em contraposição ao que pregava, a concentração de renda ou ironicamente, a “moral tradicional”.  Não existe qualquer sinal dela na crise de 2008, em que o sistema financeiro foi salvo por dinheiro público, ou em suas consequências, que perduram até hoje.

Seguimos assistindo aos efeitos destas políticas. Crise financeira de 2007-2008, o envio da riqueza para paraísos fiscais, onde nada se produz; o lento colapso da saúde e da educação públicas, as milhões de crianças penalizadas pela fome, a epidemia de solidão, a destruição de ecossistemas, a eleição de Trump. Mas nós respondemos a estas crises como se surgissem isoladas, sem nos darmos conta que foram exacerbadas pela mesma ideologia coerente.

“A desigualdade”, escreve o jornalista George Monbiot, “é vista como uma virtude”. O neoliberalismo  se tornou tão universal que raramente o percebemos como uma ideologia. “Parecemos aceitar a proposição de que esta fé utópica e milenar descreve uma força neutra, uma espécie de lei biológica, como a teoria da evolução de Darwin. Mas a ideologia surgiu como uma tentativa consciente de remoldar a vida humana e deslocar o local do poder”.

O neoliberalismo, prossegue Monbiot, “vê a concorrência como característica definidora das relações humanas. Redefine cidadãos como consumidores, cujas escolhas democráticas são melhor exercidas pela compra e venda, um processo que recompensa o mérito e pune a ineficácia. Ela mantém que o ‘mercado’ entrega benefícios que nunca seriam conquistados pelo planejamento”.

As tentativas de limitar a concorrência são tratadas como inimigas da liberdade. Impostos e regulamentações devem ser limitados. A organização do trabalho e as negociações coletivas de sindicatos são vistas como distorções de mercado que impedem  a formação da hierarquia natural de ganhadores e perdedores. Os esforços de criar uma sociedade mais igualitária são tanto contraproducentes como moralmente corrosivos. O mercado garante que todo mundo tenha o que merece.

Pode parecer estranho que logo uma doutrina que promete escolha e liberdade é promovida com o slogan “não há alternativa”. A liberdade que o  neoliberalismo promete  é a liberdade para os grandes, não os pequenos. A liberdade de envenenar rios, colocar trabalhadores em risco, de cobrar taxas de juros absurdas e criar instrumentos financeiros exóticos.

Jovens são continuamente obrigados a buscar um emprego que não podem encontrar, a não ser em condições de precariedade e subsalário. O efeito emocional é ansiedade, depressão e paralisia do desejo. A condição precária transforma os outros em inimigos potenciais, em competidores

Recentemente, mesmo uma instituição arqui-conservadora como o Fundo Monetário Internacional declarou, pela voz de sua presidente, Christine Lagarde, que o neoliberalismo não conduziu ao crescimento econômico, e que apenas havia deixado poucas pessoas em situação muito melhor: “Ele causa crises épicas que deixam atrás de si destroços humanos e custos de bilhões de dólares para limpá-las”.

A mesma instituição, em artigo de Jonathan Ostry e colegas, lembra que, em 1982, o economista Milton Friedman, da ultraconservadora Escola de Chicago, declarou que o Chile, sob Pinochet, vivia um “milagre econômico” (soa familiar?). Dez anos antes disso, o país adotara as políticas ditadas por Friedman – o aumento da concorrência, com a desregulamentação e a abertura dos mercados domésticos, incluindo o financeiro, à concorrência  estrangeira, e um papel menor do estado, com a privatização e os limites dentro dos quais os governos podiam gerenciar déficits fiscais e o acúmulo da dívida.

A Nova Mediocridade, como Lagarde batizou o atual estado de coisas, faz com que outros, como o influente e articulado Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia e professor da Universidade Columbia, temam que a economia global mergulhe em depressão ou em pelo menos uma estagnação duradoura.

Neste quadro, a parte dominante da sociedade prega que todos podem fazer o que quiserem se derem duro o bastante, e a minoria reforça seus privilégios enquanto coloca um peso extraordinário nos ombros de cidadãos sobrecarregados e exaustos. Um número cada vez maior de pessoas fracassam, se sentem humilhadas, culpadas e envergonhadas. Sempre nos dizem que nunca tivemos tanta liberdade para escolhermos nossos destinos, mas a liberdade de escolha é na verdade mercadoria escassa. Além disso quem fracassa é rotulado de “perdedor”, mamando do dinheiro fácil do sistema social (soa familiar?).

O incensado sociólogo Zygmunt Bauman resumiu o paradoxo de nosso tempo: “Nunca fomos tão livres antes. E nunca antes fomos tão impotentes. Temos realmente mais liberdade, no sentido de que podemos criticar a religião, aproveitar a nova atitude do laissez-faire em relação ao sexo e apoiar qualquer movimento político que quisermos. Porque todas essas coisas não têm mais relevância”.

A ativista canadense Naomi Klein acredita que as crises sociais que acompanharam as políticas econômicas neoliberais não são resultado de incompetência ou mau gerenciamento. São centrais ao projeto de livre mercado, que só consegue avançar contra um pano de fundo de desastres. Ela sugere que estes desastres são fabricados como parte de uma política deliberada moldada por corporações com interesses escondidos em governos. Ou que o desastre é parte do funcionamento normal do capitalismo que temos hoje.

Andrew Sayer, professor da Universidade de Lancaster, na Inglaterra, diz em seu artigo “Economia Moral e Economia Política” que “as palavras usadas pelo neoliberalismo frequentemente mais escondem do que elucidam.” O “mercado” soa como um sistema natural que nos toca a todos igualmente, como a gravidade ou a pressão atmosférica” “O que os ‘mercados’ querem tende a significar o que corporações e seus donos querem. Investimento significa duas coisas diferentes: uma é o financiamento de atividades produtivas e socialmente úteis. Outro é a compra de ativos existentes por rentistas, para o usufruto de juros, dividendos e ganhos de capital. Usar a mesma palavra para duas coisas camufla as fontes de riqueza e faz com que confundamos extração de riqueza com criação de riqueza”.

A precarização e o empobrecimento produzido pela ditadura neoliberal produziram um efeito paradoxal. A tecnologia reduz o tempo de trabalho necessário, mas o capital codifica o tempo liberado como parado e o sanciona, reduzindo a vida das pessoas a uma condição de miséria material. Em consequência, jovens são continuamente obrigadas a buscar um emprego que não podem encontrar, a não ser em condições de precariedade e subsalário. O efeito emocional é ansiedade, depressão e paralisia do desejo. A condição precária transforma os outros em inimigos potenciais, em competidores.

A mudança de paradigmas irá ocorrer em um cenário no qual o mundo enfrente com dificuldade a necessidade de transformação estrutural – desde a passagem da manufatura aos serviços na Europa e América do Norte, do crescimento pela exportação ao crescimento pela via do mercado doméstico, no caso da China. Ainda, muitas economias baseadas em recursos naturais, na África e América Latina (caso do Brasil), não conseguiram tirar proveito do boom nos preço das commodities para criar uma economia diversificada – agora, elas experimentam as consequências de preços deprimidos em suas exportações. E os mercados nunca foram capazes de fazer tais transformações estruturais por conta própria.

De novo, a intervenção do estado terá de ser mais ampla.  Isto será ainda necessário no caso, por exemplo, de  educação, tecnologia, meio ambiente e na facilitação das transformações estruturais exigidas em todo o mundo. Os obstáculos não estão na economia, mas na política e na ideologia, e o Brasil, que no momento padece de um governo que tenta privatizar e saquear setores vitais da economia, é um caso muito ilustrativo. O setor privado criou a desigualdade e a degradação ambiental que assistimos.  Mercados não vão resolver estes e outros problemas críticos ou sozinhos restaurar a prosperidade.

José Eduardo Mendonça

Jornalista com passagens por publicações como Exame, Gazeta Mercantil, Folha de S. Paulo. Criador da revista Bizz e do suplemento Folha Informática. Foi pioneiro ao fazer, para o Jornal da Tarde, em 1976, uma série de reportagens sobre energia limpa. Nos últimos anos vem se dedicando aos temas ligados à sustentabilidade.

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